Matinal

15/07/2023

A ressaca era até moderada. Levantei da cama e percebi que aquela manhã estava surpreendentemente silenciosa, apesar de ser manhã de quarta-feira. Os trabalhadores labutavam em silêncio no mundo a fora, para além do meu mundo restrito às paredes do meu quarto.

Ela chegaria dentro de duas horas. Cuidei para que o apartamento estivesse minimamente apresentável. Meu gato, pra variar, tentava agarrar o meu pé enquanto eu transitava de um lado para o outro, levando comigo latinhas de cerveja que estavam aos montes por toda o apartamento. Nesse instante, penso se não seria uma boa ideia adentrar ao comercio de reciclagem, posto sempre há latinhas no meu apartamento.

Já relatei, em outro momento, que não jogo absolutamente… mas o baralho estava ali, espalhado sobre a mesa. Meus dois melhores amigos, embora não valham lá muita coisa, são boas pessoas, mas fizeram o ‘favor’ de não juntar o carteado e guardá-lo no seu devido lugar, como fora combinado anteriormente.  ‘‘Qualquer dia, irei jogar esse baralho no lixo… Malditos!’’, pensei enquanto organizava o quarto.

Já no banho, a canção (sempre tomo banho ouvindo música – geralmente MPB ou rock) ‘’Olha’’, na impecável interpretação da Maria Bethânia, parecia prever o que aconteceria, no seguinte trecho: ‘‘Olha, vem comigo onde eu for/ Seja meu amante, meu amor/ Vem seguir comigo o meu caminho/ E viver a vida só de amor’’. Era uma previsão iminente

A ressaca já estava controlada quando ela chegou. Desci para buscá-la. Já no quarto, conversando amenidades, o seu perfume impregnava docemente o quarto e uma música ambiente do Djavan dava o clima propício para uma viagem própria de espíritos livres. O próprio ar era de uma atmosfera distinta; parecia que o tempo queria calar o mundo lá fora em nosso benefício.

Um erudito amigo me disse uma vez que o coração de um homem é como o convés de num navio: cheio de rachaduras e farpas. Naquele instante, o meu coração encontrava-se completamente restaurado da tormenta de tempos de outrora. Nesta manhã, a paz reinou, a calmaria se fez. Se devemos ser imitadores de Cristo, aquela mulher seguiu tal preceito, pois, como Jesus – na passagem do livro de Lucas -, ela acalmou a tempestade na qual me encontrava.

Aquela manhã foi completamente atípica, afinal, não é todo dia que temos a oportunidade de parar o mundo e sermos só nós, os dois,  ao mesmo tempo, sobretudo por não se tratar de um fim de semana festivo, mas uma insólita quarta-feira que, de tão calma, parecia só oferecer tédio; mas não foi o que aconteceu, pois o relato que vos trago mostra que ainda há gente de verdade nesse mundo velho de aparências;  de pessoas que vivem do trivial, do supérfluo…

Eu poderia relatar as minúcias, mas não convém; ao invés disso prefiro guarda-las para mim, para ela e eu, na realidade. Ao amigo leitor, fica o meu desejo que que essa história o estimule o inspire a buscar a sua própria história digna de ser compartilhada, assim como esta.

A propósito, eu falei que os seus olhos claros, que também lembram as águas marítimas, que ela as fizeram calmaria, me fitavam com uma franqueza e repouso próprios dos seres evoluídos que nela habitam? E que a sua respiração era igualmente silenciosa e pacífica, como uma madrugada bem dormida?

Quando ela se foi, voltei para a vida comum, que gosto, é bem verdade, mas que, com a sua presença, transforma-se em um novo mundo; mundo este, que desbravamos e descobrimos com leveza e loucura… Que matinal!…

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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