De minha infância, só recordo vivamente do primo. Era magricelo, longelíneo, de rosto chupado e pele queimada do sol que castigava os garimpos do Pará. Tinha cabelos como que empoeirados, como se banho nenhum fosse capaz de lhe tirar a cor de terra dos fios repartidos de banda. Usava roupa caipira e falava com sotaque esquisito: vou ali “banhar”. Sempre arrastando o erre ao infinitivo. Coisas da região dele, vovó dizia.
A chegada do primo mudou a rotina da casa. Vovó deixava eu sair e até dormir mais tarde, desde que estivesse com ele. Ele foi o primeiro a me levar na feirinha e mostrar as fitas cassetes da banda É o Tchan! Fiquei embasbacado com aquelas mulheres com roupas estranhas, mínimas, de corpos perfeitos até para um moleque que não reparara até então nas meninas. As fitas eu passei a comprar às escondidas, feito os garotos que colecionavam as revistas da Playboy.
Um dia senti uma coceira no meu pinto. Esfreguei, esfreguei até que saiu um liquidozinho estranho. Tinha a mesma cor do líquido que saía desses remédios de conta-gotas que a gente tomava quando adoecia. Não contei ao primo. Passamos um mês inteiro caçando lagartixas, explorando o açude, pulando das pedras para a correnteza – e eu mal sabia nadar! Nunca faltava o que fazer. Se não tivesse, a gente inventava.
Mas logo o primo arranjou namorada. Uma morena que morava na parte de cima da rua e que andava com shorts curtíssimos que exibiam as nesgas da bunda. Ele dizia a ela, em minha presença:
– Amandinha, tu me dá?
E eu caia na gargalhada, mesmo sem entender direito o que é que ele queria que ela desse.
O primo era um Deus para mim. Era feio como um pobre-diabo, mas todos queriam estar perto dele, aprender algo dele, às vezes rir dele. Os moleques invejosos caçoavam da magreza dele; o chamavam de frango, mas sempre pelas costas. Diziam que não gostavam dele, mas não saiam de sua órbita. E eu tinha ciúmes, queria ser o único. Um dia, quando estávamos a sós, ele me contou um segredo.
– Um dia eu vou me vingar D’Ele.
– De quem?, eu disse.
– De Deus. Ele matou meu pai.
– Como Deus matou seu pai?
– Com três tiros. Depois o enterrou num lugar secreto, para que a gente não achasse e não velasse o corpo.
Como eu não o entendesse, ele contou que os homens de um garimpo rival, homens muito devotos, haviam feito uma tocaia. Enquanto seu pai garimpava madrugada adentro, eles o cercaram e meteram três balas no velho. Depois o enterraram na mata. Deviam ter cavado bem fundo, num local onde garimpeiro nenhum pudesse achar.
– Eles atiraram, mas sei que foi Deus quem direcionou às balas. Mamãe diz que tudo que acontece é por permissão de Deus. Tá vendo aquela folha? – ele apontou para uma folhinha na ponta de um galho que cobria a latada que ficava na entrada de nossa casa -. Mamãe diz que até essa folha só cai do galho se Deus quiser que ela caia.
– E como você vai matar Deus?!
Ele ficou em silêncio. Mas eu não parava de pensar. Como o primo conseguiria acertar Deus? Ele não dava às caras. Não entrava em tiroteios. Não se colocava em situações de risco. Não aparecia nos cultos nem nas missas que eu ia. Deus era feito meu pai: que eu não sabia onde estava, se vivo ou morto. Mas sabia que estava longe e que não pretendia voltar tão cedo.
Não muito depois ele partiu. Não me contou seu plano para vingar-se do Todo-Poderoso. No dia do meu aniversário, ganhei uma pistola de bolinhas. Passava aquelas manhãs de férias atirando numa caixa de isopor, imaginando está acertando Deus e vingando o primo. Sentia raiva, muita raiva. E maldizia Deus em meus pensamentos. Um dia resolvi maldizer a terceira pessoa da Trindade, o Santo Espírito. Vovó dizia que todos os pecados poderiam ser perdoados, menos os contra o Espírito Santo. Mal terminei o pensamento, tive certeza da minha condenação eterna.
Isso me afligiu por umas semanas. Andava às voltas comigo mesmo, sempre disperso, sem prestar atenção nos sermões do pastor. Afinal, do que me adiantaria aquelas palavras de salvação? Estava condenado. Por outro lado, se já estava condenado, poderia fazer toda e qualquer travessura que não acrescentaria pena à minha pena. Meu mau comportamento começou a chamar a atenção da família. Levaram-me ao pastor, ao padre, às irmãs de oração… Na frente de todos eu era dócil, arrependido, chegava a chorar… E a resposta sempre era a mesma: que aquilo era uma provação, pois Deus tinha grandes planos para a minha vida. Eu pensava com meus botões: sei exatamente quais são os planos dele…
O tempo foi passando e eu passei a praticar outras maldades. Agora eu já tinha espinhas. Namorava as meninas da igreja. Fazia com que elas gostassem de mim, contassem seus segredos mais obscuros, seus pecados… e depois, sem explicações, eu terminava tudo. Vovó ralhava comigo ao saber da malvadeza: “pobres moças…”.
Mas minha fama de ovelha perdida atraía as garotas, mesmo contra os conselhos dos mais velhos. Cansei das seduções. Resolvi então mudar de estratégia. Comecei a me dedicar à igreja. Virei pregador. Conquistava as multidões para Cristo. Cheguei a ser cogitado para pregar em Camboriú. Percorria estados e cobrava um cachê alto por cada pregação. Sempre que eu terminava de mentir para as multidões, me lembrava do primo. Há anos eu não mantinha contato com ele.
Um dia fui ao Pará pregar num evento. Descobri que ele estava morando numa fazenda. Havia casado e era pai. Assim que a mulher dele nos deixou a sós, eu perguntei:
– Lembra da vingança? Eu a estou executando por você.
Ele fez um gesto de incompreensão. Notei que ele havia engordado, mudado o corte de cabelo. Tinha uma barba rala, já com fios brancos. Tratei de refrescar-lhe a memória. Ele me ouviu atentamente. Após eu narrar o episódio da infância e toda a minha trajetória até ali, ele pôs a mão no meu ombro e disse:
– Mano, eu nem me lembrava mais disso. Eu tinha dezesseis anos e havia perdido meu pai. Devo ter falado essa bobagem para você mesmo.
Levantei-me do alpendre onde estávamos. Estava com os olhos cerrados de raiva, muita raiva. Ele apontou para um cavalo que estava numa cerca e disse que há dois meses tentava amansar o bicho. Falou que tinha dívidas e que o casamento não ia bem. Que o moleque dele mal o ouvia. Despedi-me dele não sem demostrar minha decepção. Saí de lá decidido a nunca mais querer saber do Primo, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Enquanto esperava o avião para regressar, ouvi a conversa de dois jovens. Um deles dizia que havia um golpe em curso. Tudo orquestrado pela elite que falava em nome de Deus, da pátria e da família. “Afinal, o velho continua muito vivo, hein?!”, pensei.
Só havia uma solução: A luta armada. Não tive dúvidas: agora eu sabia em que trincheira deveria lutar.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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