‘‘Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.’’
Trecho de Cantiga de Esponsais, Machado de Assis
Frustrado, próximo da morte (talvez), já na metade do caminho para a senectude, penso se deveria ter aprimorado minhas potencialidades com maior afinco; com maior dedicação. Receio ter me tornado o novo velho mestre Romão Pires, do conto Cantiga de Esponsais, do grandioso Machado de Assis. Procurando consolo, penso também que pelo menos não me tornei o outro, e pior senil: Dom Casmurro – outra magnífica obra do mesmo escritor carioca.
A frustração de Romão pela quase completa incapacidade de expressar-se pela composição tornou-se, no desengano e no moribundo fenecimento, uma questão de brio. Talvez até tenha sido a vã tentativa de permanecer vivo através da consumação de sua obra – afinal, alguns poucos privilegiados conseguiram tal feito da imortalidade através da magnitude artística deixada para a posteridade.
Os aplausos e admirações do mundo exterior não são capazes de compensar o vazio do fracasso interno, pessoal. Romão, assim como eu, bem o sabia. O casebre sem vida feminina, sem cor, sem alegria parecia metamorfosear concretamente o estado de vida e de desventura do velho mestre. Não quero ter de buscar, como ele, inspiração nos casais que passam. Não desejo ouvir risos de cônjuges, de alheios, que não o meu e o da minha companheira. Nem mesmo todo o conhecimento pôde salvar o ancião da frustração de ouvir a melodia que deveria ser a sua, cantarolada pela boca de uma desconhecida apaixonada! Que fatalidade!
Quanto a mim! Preciso recorrer ao violão; mesmo que compondo mediante a clássica sequência sol, ré, mi menor e dó… Devo recorrer ao violão antes que a composição que deveria ser minha seja composta por outro ou outra! Devo retomar os traços no papel, antes que outro alguém desenhe as obras que deveriam ser as minhas, mas que, por uma razão ou outra, deixei escapar os momentos de produção! Devo, também, voltar à escrita. Preciso escrever mais e mais, antes que meus contos e crônicas, absortos, se percam nos devaneios da minha própria irresponsabilidade; e que as inspirações, por não serem usadas com a devida propriedade, migrem para uma mente mais disposta e compromissada que a minha.
Não posso morrer como Romão. Ainda tenho metade do caminho… Que o amigo leitor possa pôr também em dia as resoluções de suas próprias frustrações. Seja lá o que for, ainda há tempo para potencializar as características que são as suas. Coloque as suas leituras em dia; vá àquele parque que há muito a procrastinação o limita a fazê-lo. Volte a tricotar, pedalar, beber… sei lá… faça algo! Enfim, faça o que deixou de lado e que o seu espírito, amordaçado e dormente, no fundo obscuro e enjaulado, anseia por reviver!
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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