Metal seguido de Gospel

10/07/2021

“Ela era o meu avesso; e o avesso não é o contrário, mas a parte de dentro”.

“E o rapaz não esqueceu a mocinha… O que é um erro: todo homem é uma ilha. Vamos deixar de poesia!” Rubem Fonseca

 

Eram quase duas da madrugada. À época eu seguia o costume iguatuense de nunca beber só. Sempre convidava à minha casa um amigo de noitadas para cumprir o rito das sextas-feiras: beber, ouvir música em alto volume e falar frivolidades.

Lá pelas tantas, o paraíba, amigo da vez, resolveu ralhar comigo:

– Cara, que esquisitice é essa tua? Toda vez que bebemos tu mete uma música gospel no meio de uma rodada de rock e metal. Explica isso aí.

– Coisa minha. E outra: a vez de pôr a música é a minha, não?

– É. mas explica isso. Aposto que tem mulher no meio.

Como ele insistia em saber, resolvi contar a história por trás da esquisitice.

Dois anos antes, havia ido a um desses retiros evangélicos. No período do Carnaval, quando eu me cansava da carne, costumava alternar indo a eventos do espírito.

Eles costumavam dar folhetos no primeiro dia com a pergunta: “O que você busca este ano?”

Escrevi no verso: “Não quero ser apenas um membro do corpo; quero achar minha unidade”. Alguém se aproximou e espiou por cima do meu ombro. Pus a mão sobre o folheto.

Todos a chamavam por Jane. Era a mais linda entre as filhas de Deus. Tinha uma tez muito branca, cabelos com longas madeixas enegrecidas e uma voz que era a inveja dos anjos.

– Filosófico, hein?

– Você acha? Ri.

– Que bom que voltou este ano. Você está bem. Voltou filósofo e mais magro.

Metido a filósofo, sempre fui; mas magro era a primeira vez. Anos antes eu já havia sido enfeitiçado por sua voz, sua entrega ao cantar, seu corpo de bailarina. Mas nunca acreditei nos contos de fadas que unem criaturas opostas. Na vida real os iguais se buscam, Narcisos que somos.

Agora, misteriosamente, ou melhor, aparentemente, ela quem me buscava. Mas não poderia ser mais do que parecia, e simpatia não se confunde com interesse. De mais a mais, minha boca já tinha encontro marcado com outra.

No terceiro e último dia, entretanto, a mãe de Jane me trouxe um pedaço de bolo de chocolate. “Eu quem fiz, mas foi outra pessoa que me pediu para entregar. Acho que você já sabe”.

– Quem? quis saber.

– Não percebeu nada? Olha, não me meto nessas coisas, mas minha filha não tira os olhos de você.

Fiquei atônito. Vendo que meu olhar estava totalmente perdido, a santa senhora interveio:

– Olha só, não costumo fazer isso, mas ela está lá na cozinha. Acho que vocês deveriam conversar.

Quando lá cheguei, ela estava sentada e muito retraída. Sentei-me e ficamos olhando um ao outro sem dizer palavra. Vi que ela estava impaciente. Tomei coragem e apenas disse “Após o término da reunião, quero te ver”. E saí. Encontrei-a mais tarde, ainda mais linda que antes. Usava um vestido branco de rendas.

Quando ficamos a sós, ela foi direta quanto ao que estava sentindo. Aproximei-me e nos beijamos. Senti a felicidade entrar em mim feito o sopro do espírito que tanto procurei durante o retiro.

Mas, súbito, veio o medo e a culpa por ter beijado outra boca antes da dela. E, num passo comum ao jovem ingênuo, achei que a sinceridade poderia ser a escolha certa para começar nossa relação.

Contei-lhe tudo. Ela não esboçou reação. Apenas disse que não viveria tudo de novo. Que havia se enganado a meu respeito. E me deixou só. Depois é que soube que ela possuía machucados de amor.

Tentei de tudo para convencê-la de que jamais lhe faria mal. Tudo se tratava de um erro. Erro humano. À época, não entendia como um pequeno erro pode pôr fim a uma história que tinha tudo para ser.

Pedi que outros intercedessem por mim. Roguei a Deus, até. Mas foi em vão. Nunca mais a vi. Nunca mais a ouvi cantando de olhos fechados. E agora só me restavam as músicas que ela cantava como lembrança e arrependimento.

O meu amigo ouvia com certo interesse. Depois veio o desdém dos bêbados:

– Relaxa, velho. Essa é apenas mais uma das muitas histórias que a gente lembra quando está com umas na cabeça.

Tu é esquisito mesmo. É minha vez: põe Matanza que isso se cura.

Era inevitável. Eu era realmente apenas um corpo entre todos os outros. Um corpo que come, bebe, dorme, e com um agravante: um corpo que abre a alma para outro corpo.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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