Ao ligar o rádio, ouviu do cantor e compositor mineiro Zé Geraldo, o que seu coração, no fundo, já sabia: ‘‘Não tema o jeito do destino/ Viver é só um fingimento/ E tudo é só uma lembrança/ Imagens momentos.’’ Aqui começou a sua divagação a esmo.
Sentou-se na cadeira surrada pela ação do tempo e pôs-se a meditar sobre a letra da supracitada canção. ‘‘Aprendendo a viver’’. Não podia haver título melhor para esta canção. Pensou sobre a vida e a morte, condição do nosso existir e fenecer. Concluiu o óbvio: somos apenas momentos. Logo já nada mais seremos; nem mesmo lembrança.
Observou que pensar na existência passou a ter um nível de preocupação constante em sua vida; nisso, correu para a geladeira e, para continuar sua introspecção, serviu-se de uma caprichada dose de whisky barato. Olhou para o copo, e o vidro marrom levou-o para a memória do seu velho pai que partira há alguns poucos anos. Ainda havia lembranças do velho, ao menos por enquanto. Mas um dia as memórias daqueles dias também se dissiparão, essa era a sua certeza enquanto tragava, ao mesmo tempo, a dose e essa dura realidade.
É certo que muitos são os que passam pela vida, sem ter vivido – refletia. Muitos são os ‘‘mortos que respiram’’ – continuou divagando. Nesse momento, uma orfandade o invadiu. Seu espírito, num átimo, fora arrebatado para a nostalgia de um passado onde a vida era mais simples e séria. As pessoas daquela época em nada lembram as chatas contemporâneas.
Ele viu os seus avós, seus amigos, seus pais, suas mulheres, os lugares inesquecíveis da cidade… Contemplou tudo até não poder mais. Sentiu o seu corpo pulsar forte; sentiu-se vivo em meio ao estranho e satisfatório transe epifânico. Estava de olhos abertos, mas não via este mundo, mas sim o do tempo passado. Conseguia até mesmo sentir o cheiro que pairava no ar.
Fez um esforço hercúleo para identificar o preciso ano de tudo o que via. Descobriu! 1991! Sim, trinta e dois anos! Este era o hiato que separava o agora do ontem. Ele não queria deixar o passado. Se pudesse, viveria nele para sempre! A humanidade atual é desinteressante, vazia e ressentida demais para qualquer um que já não tenha mais estômago para ela. Causa náusea e tédio.
Ao regressar da singular experiência, notou que o rádio agora tocava a pouco conhecida – mas belíssima – ‘‘Amor de Perdição’’, do genial cearense Belchior. O trecho: ‘‘Nosso amor se perdeu/ Entre tantos quereres/ E hoje já era o que era/ Para não ter fim…’’ Ingeriu mais uma boa dose goela abaixo. Olhou para a janela e viu o céu azul. Ele lembrou que até o céu de 1991 era mais atraente do que o de agora. O tempo e sua inexorável ação destruidora.
A vida é feita de momentos, todos nós sabemos desta máxima comum. Mas como saborear estes momentos, se os mesmos estão cada vez mais insossos? Seria o caso de apegar-se unicamente ao também conhecido ditado ‘‘recordar é viver’’? Uma vez que é lá que reside a alma do saudosista? Não sei bem ao certo, mas suspeito que nada jamais voltará a ser como antes, e que os momentos têm ficado cada vez mais desinteressantes, assim como as pessoas. Em resumo, assim como a vida.
Ah, e o nosso amigo dormiu embriagado pelo whisky e pela surreal experiência espiritual. Na realidade, jamais soube distinguir se aquilo foi um sonho ou pura realidade demente, se foi um delírio alcoólico ou qualquer outra coisa. Só conseguia lembrar, mas não precisar nada com exatidão e certeza.
São momentos, são momentos…
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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