Mulheres Fantásticas

05/10/2019

Pouco em qualidade estética se tem produzido desde Carpentier, Borges, García Márquez, Cortázar, Asturias e Onetti, para citar aqueles que me ocorrem neste instante, em termos de narrativa fantástica. 

O próprio conceito, em que pese o que nos legaram nomes gigantescos da crítica literária, a exemplo dos mais antigos, como Nodier, Chklóvski, Tynianov e Eichenbaum, ou mais recentes, como Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Genette e Julia Kristeva (sem esquecer Foucault, Derrida, Deleuze e tantos outros), passou por transformações nunca desprezíveis. Afinal, o que existe de importante a diferenciar o fantástico do mágico ou maravilhoso, na linha do que se gastou tanto papel em busca de uma definição jamais encontrada?

Teorias de novo? Por favor, não! Chega de academia, queremos literatura! 

Pois bem, é isso que faço quando recomento aquele que me parece o melhor livro do gênero no ano de 2019. Sem meias-palavras, refiro-me ao livro de contos Mulheres Fantásticas, do poeta, romancista e contista Clauder Arcanjo, cuja obra vai aos poucos constituindo um conjunto literário de peso, mesmo quando, por inevitável, temos pela frente – no caso do realismo fantástico que o título do livro sugere -, autores imortalizados pela força de sua arte extraordinária, nomes destacados acima e aos quais se somam, permitam-me, Kafka de A Metamorfose e Jan Potocki de Manuscritos de Saragoça; Borges de História Universal da Infâmia e O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, para mencionar obras-primas da grande literatura. Estes são monumentais, é fato, mas temos os nossos craques também.

Ancorando suas narrativas na “mentira” a que se refere Charles Nodier, no clássico Du Fantastique en Littérature (1830), tipificando o terceiro momento da trajetória do homem como ser capaz de imaginar (os outros dois são o da poesia, fase ingênua das sensações diante da realidade, a que se segue a do deslocamento do conhecido para o desconhecido), Arcanjo tece, com o engenho de ficcionista raro, suas histórias maravilhosas sobre o mundo feminino, todas elas tendo como cenário a mítica e fascinante Licânia, “perdida no sopé do Serrote da Rola, à beira das águas do Acaraú”. 

Assim, deparamos com os mais diferentes e impensáveis tipos de mulher: a mulher galinha (sem a conotação vulgar atribuída à metáfora), a mulher sapo, a mulher abelha, entre outros, e vamos, como que encantados, penetrando este universo eternamente desconhecido e sedutor da feminilidade.

É notável, todavia, a forma como o narrador mistura real e sobrenatural, passando de um a outro, aqui e além, com a habilidade de um bruxo a nos conduzir pela mão ao território do estranho, do inesperado, do maravilhoso, sobre cuja ambiguidade assenta a sua prosa a um tempo referencial e poética, como a desvendar o imponderável da existência humana por que, cedo ou tarde, aqui ou além, somos todos sob algum aspecto dominados. Impossível ao leitor com um repertório acadêmico mais avançado, portanto, não lembrar de um certo Freud, ou mesmo Jung e Lacan, cada um a seu tempo e por determinado viés.

Ler “Mulheres Fantásticas”, qualquer que seja a perspectiva de leitura, contudo, pressupõe firmar com o narrador um pacto de ruptura com o inteligível platônico, pois que  a realidade é mesmo produto de nossa imaginação, e dela é que nasce a beleza da vida e das coisas – e com que se constrói “o império do pensamento humano” no dizer deste que foi o primeiro grande estudioso da narrativa fantástica.

De resto, Mulheres Fantásticas fez-me lembrar Vergílio Ferreira, o grande escritor português: “O fantástico não está fora do real, mas no sítio do real que de tão visível não se vê”.

Por último, faço questão de ressaltar que o requinte da edição, diga-se em tempo, é de encher os olhos. Um livro notável.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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