Músicas de Plástico

22/03/2025

Kleyton Bandeira Cantor, compositor e pesquisador cultural

Kleyton Bandeira
Cantor, compositor e pesquisador cultural

Imagine que música é água.

Desde quando o mundo é mundo, a música já estava lá. Quem sabe o mundo não nasceu dum tilintar de um triângulo lá pelas bandas do Exu, no Pernambuco.

Brincadeiras à parte, nas civilizações antigas a música era venerada como o meio ideal de se transmitir ordens divinas e agradecer por elas. Era como se Deus se comunicasse com a gente por meio da música (hoje parece que o capeta é quem usa a música para se comunicar com os seus asseclas por aqui). No Egito Faraônico era terminantemente proibida qualquer alteração, por mais simples que fosse, em seus cânticos tradicionais por um simples motivo: o compositor desses cânticos era o deus Osíris. O último salmo do Antigo Testamento estimula os fiéis a louvarem ao Senhor com metais, madeiras cordas e percussão.

Chegando mais pra perto da nossa geração, já na era antropocêntrica, os Gregos Clássicos afirmaram que não, nada de deuses. Quem afirmou a importância da música foram os homens. O mais importante deles sendo Orfeu que, com seu velocino de ouro, abafou o canto das sereias e salvou seus colegas argonautas na volta para casa. Não vou me estender sobre os pensamentos de Nietzche, Aristóteles nem Platão sobre música (tenho pouco espaço).

Enfim, saímos de artistas como o rei Osíris, passando por Mozart, Beethoven, Wagner, Back, Elvis Presley, Os Beatles, B B King, Nelson Gonçalves, Caetano até chegarmos em MC Cabelinho, e em sucessos meteóricos como “Calma Vida Tá de Boa”.

Pois bem, sigamos!

Como falei no início do texto, a música sempre foi fluida, sempre fluiu de forma mágica, mística mesmo, de humano para humano. A música sempre foi uma forma de manifestação do ser. Na língua africana Sessoto, o mesmo verbo Ho Bina tem dois significados: cantar e dançar. Resta claro que música, corpo e alma se confundem, explicitando cada vez mais a expressão genuinamente humana imbricada na música.

No decorrer dos últimos cinco séculos, a música nunca foi um privilégio de poucos. Qualquer um podia fazer música. Acontece que ela virou um espetáculo mercantil (chulo, diga-se de passagem). Estabeleceu-se um mercado da música, onde a experiência musical se separa do produto musical, e essa atividade vem apartando a música de sua essência, e o que era fluido precisou ser congelado para poder ser comercializado. Você está acompanhando o meu raciocínio?

Veja bem, uma gravação musical é exatamente isso: um recorte temporal congelado por meio da música. Com isso, a música que era água, passou a ser uma pedrinha de gelo, e essa pedrinha de gelo é consumida, derretendo, toda vez que apertamos o play. A coisa vem ficando meio que aleatório com o passar do tempo. Mas não nos esqueçamos que, pelo menos, a essência do gelo é a água e, mesmo congelada, a música ainda guarda a sua essência. Correto? Piora e eu explico.

Acontece que, bem na nossa geração, gravadoras, artistas e todos os profissionais da música vêm confundindo gelo com água, dando muito mais importância ao produto fonográfico do que para e experiência musical em si. Quando as pessoas vão a uma roda de samba ou ao são João de Campina Grande, na Paraíba, elas tomam um banho de música, vivenciam a música na prática e se conectam cada vez mais umas com as outras. O mesmo não acontece com as músicas atuais. Sabe por quê?

Porque, além de tudo isso que falei, quem também entendeu as nuances do mercado fonográfico foi a IA, e ela não precisa mais nem da água nem do gelo. Ela simplesmente cria algo semelhante à pedrinha de gelo, não de água, mas sim de plástico, que, quando derretida, não vira água. Logo, a música não precisa mais de sua essência, como não precisa mais de experiências vividas por gente, não precisa mais de compositores, nem de cantores. Agora elas são feitas por robôs, e robôs não têm passado, logo não precisam de vida para ser vivida e sentida na perspectiva de se criar algo.

Meus amigos, plastificaram a música.

Hoje, partículas de micro plásticos são encontradas na corrente sanguínea e em alguns órgãos vitais de humanos, como no nosso cérebro, por exemplo.

Lembro-me muito bem quando, em tenra idade, meu pai me apresentou a música Boi Bumbá, de Luiz Gonzaga. Foi a primeira música que escutei na minha vida. Ali eu já descobria o quão mal o plástico faria à saúde, sobretudo à saúde mental, das pessoas.

Por hoje ficamos por aqui!

Bom final de semana, camaradas!

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