Nem tão idiossincrático assim

16/01/2021

Amigo me conta levando-me a riso solto:

– Havia em Fortaleza um intelectual de tal modo apegado a seus próprios interesses que se negava a dizer o que estava lendo ou o fizera havia pouco tempo. Imagina, dar de mão beijada o que resultara do seu esforço, de sua motivação pessoal para estar em dia com o que se produzira em termos de literatura, política, filosofia, seja lá o que fosse objeto de discussão entre pares…

No seu egoísmo insano, diz mais, “saía às livrarias à cata de novidades e, se preciosas, as comprava na totalidade do estoque para que outros não tivessem acesso ao material encontrado”.

Conto essa história, por coincidência, quando recebo do amigo e admirável Filomeno de Moraes Filho, num gesto que traduz sua elegância e perfeita compreensão de um dos verdadeiros papeis do bom intelectual (socializar seus conhecimentos), relação com alguns títulos selecionados entre aqueles que leu no ano que passou. De sua relação, que cada leitor institui suas preferências, seleciona os livros que melhor se adequam ao idiossincrático e personalíssimo momento de sua atividade intelectual, havia lido três ou quatro: Na Contramão da Liberdade, o mais que recomendável livro de Timothy Snyder sobre a guinada à direita das democracias contemporâneas; Torto Arado, o belíssimo romance de Itamar Vieira Junior, com que seu autor arrebatou os prêmios Leya 2018 e Jabuti 2020, que constitui uma densa narrativa sobre o sertão baiano à luz de uma crítica social impiedosa e, se não me falha a memória em torno de sua relação, Os Vivos e os Outros, do angolano José Eduardo Agualusa, desconcertante reflexão sobre o tempo e o poder da palavra.

É esse, reitero, um dos papeis do intelectual, sob pena de suas leituras apenas servirem para o adensamento de sua individualidade pensante, o que pouco servirá como contribuição para o debate, a busca de caminhos para os desafios históricos da sociedade em que vive, para além de alimentar o seu ego arrogante e doentemente vaidoso.

Dito isso, como tem sido desde sempre uma prática deste escriba e leitor compulsivo, o que felizmente tem agradado aos que visitam este blog e leem suas colunas nos jornais A Praça e Segunda Opinião, aos livros destacados acima, acrescento mais dois ou três que recomendo com entusiasmo àqueles que ainda não os tiveram em mãos: O Espelho Infiel, uma história humana da arte e do direito, com que José Roberto de Castro Neves explora com leveza e pertinência as relações entre a arte e o direito; Todas as Cartas de Clarice Lispector, em edição recente da editora Rocco; Uma Furtiva Lágrima, Jabuti de crônicas e o romance Um Dia Chegarei a Sagres, de Nélida Piñon, ambos comentados por mim em vídeo do final do ano.

Boas leituras para todos em 2021.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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