Esta semana, em mais um ato de desrespeito à memória de brasileiros e brasileiras que pensaram o país com grandeza, a que se soma a realização de um trabalho singular em favor dos marginalizados, o presidente JB recusou a inclusão do nome da dra. Nise da Silveira n’O livro dos heróis e heroínas do Brasil. O fez, entre ignorante e perseguidor, num gesto típico dos autoritários quando investidos de poder: de uma canetada. Quem sabe usando a mesma caneta com que assinara, faz pouco tempo, o ato de indulto a Daniel Silveira, numa irônica coincidência de sobrenomes que em tudo se contrapõem em suas trajetórias. Este, um incitador da desordem, um baderneiro fadado à violência; aquela, orgulho da psiquiatria do país, e um dos nomes mais ilustres de nossa história pelos relevantes serviços devotados ao tratamento de doentes mentais.
Nordestina de Maceió, onde nasceu em 1905, Nise entrou para a Faculdade de Medicina da Bahia com apenas 16 anos, notabilizando-se desde então pela firmeza de caráter, e por sua incontida coragem para se rebelar contra as injustiças de toda ordem, mesmo aquelas embutidas nas práticas desumanas da medicina psiquiátrica à época, a exemplo da lobotomia, o eletrochoque, o uso indiscriminado de insulina e cardiazol.
“A rebelde. A forte. A que soube dizer não. E o rosto que era o sol. E as mãos como pintadas por El Greco, regiam uma orquestra invisível de princípios”., são palavras com que o poeta, ensaísta e tradutor Marco Luchesi, da Academia Brasileira de Letras, definiu essa mulher a um só tempo tão frágil e tão valente, que pautou sua carreira e sua história pessoal pelo amor ao próximo, nomeadamente pelos menos favorecidos, os tangenciados de uma sociedade profundamente desigual, de cuja estrutura nascem os ‘adoecidos’ mentais a que dedicou sua vida construída de profundo afeto – e de inesgotável sabedoria, como médica e como cidadã, a quem a saúde e a cultura brasileiras devem tanto.
Em 1936, acusada de simpatizar com o ideário do Partido Comunista, foi presa pela polícia política de Getúlio Vargas. A verdade é que nunca fora filiada ao partidão, muito embora tivesse com muitos de seus militantes uma identidade que assumia publicamente, jamais negando a sua admiração por homens e mulheres que dedicavam suas vidas a lutar contra a fascismo.
Na famosa Sala Quatro, cárcere das presas políticas, na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, tinha por companheiras outras mulheres igualmente notáveis, com destaque para Olga Benário Prestes, Elisa Berger, Haydée Nicolussi, Valentina Leite Barbosa Bastos e as irmãs Eneida e Beatriz Bandeira.
Mas foi com o escritor Graciliano Ramos que dividiu momentos marcantes de seus dias de reclusão. Alagoano como Nilse da Silveira, o autor de “Vidas Secas” e “São Bernardo” incluiria no incontornável “Memórias do Cárcere” alguns episódios dessa convivência: “As conversas boas de Nise afugentavam-me a lembrança ruim. A pobre moça esquecia os próprios males e ocupava-se dos meus.”
Aos interessados em conhecer melhor a história dessa heroína brasileira, tomo a liberdade de recomendar a belíssima biografia “Nise da Silveira, Caminhos de Uma Psiquiatria Rebelde”, de Luiz Carlos Mello, Automática Edições Ltda, 2014, e o sublime “Nise: o Coração da Loucura” (2016), cinebiografia escrita e dirigida pelo cineasta Roberto Berliner, com Glória Pires interpretando à perfeição o papel da homenageada.
Outro belíssimo trabalho sobre as experiências artísticas realizadas por Nise da Silveira, no serviço de terapia ocupacional e reabilitação, em 1946, no Centro Psiquiátrico Pedro II, pode-se ver no documentário “Imagens do Inconsciente”, de Leon Hirszman, disponível em DVD do Instituto Moreira Salles.
Para não falar dos brilhantes ensaios de Mário Pedrosa.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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