Noites de luar na ABL

20/11/2021

Poetas, seresteiros, namorados / Correi! / É chegada a hora de escrever e cantar / Talvez as derradeiras noites de luar.” (Lunik-9)

Chama a atenção o mal-estar que tomou conta de milhares de pessoas no Brasil desde a eleição de Gilberto Passos Gil Moreira para a cadeira de número 20 da Academia Brasileira de Letras. Nas redes sociais, sobretudo, é assustador o que se tem veiculado sobre o fato, e que bem materializa o desrespeito a um princípio intelectual básico: não se emitir opinião sobre aquilo que se ignora. No caso, a obra do artista baiano, uma das maiores da cultura brasileira.

Num juízo estreito e preconceituoso, acima de tudo, desconsidera-se o fato de que Gilberto Gil é, para além do cantor e compositor de forte apelo popular, um poeta de extração clássica, em que pese produzir letras na perspectiva das licenciosidades formais próprias do poema moderno: versos livres (sem métrica definida) e brancos (sem esquema fixo de rimas), mesmo, como é seu caso, quando assentado em bases estruturais advindas do pleno domínio da linguagem poética (ritmo, cadência, aliterações, assonâncias, consonâncias, dissonâncias intencionais, metáforas, organização inédita de imagens e associações desconcertantes). Numa palavra: o uso da linguagem em sua função poética, conforme teoria de Roman Jakobson.

Já a essa altura, dirão: ele faz letras de música, não poemas. Ao que acrescento: claro, foram pensadas para serem cantadas, portanto apoiadas no código musical. Nada impede, todavia, que sejam lidas independentemente da música, com significados e potências poéticas originais ou a ela acrescentadas. Sem esquecer que, pelo arranjo de linguagem, essas letras, como é recorrente no poema tradicional (não uma propriedade infalível sua) trazem em si uma musicalidade própria, que vai além da melodia com a qual foi produzida enquanto canção.

Nesse caso, é natural que o significante textual perca, pela ausência do código musical, parte de sua intencionalidade. Na contramão disso, no entanto, ganhará elementos novos a partir das diferentes possibilidades de leitura: ênfase, dicção, pausas, silêncios etc. O problema, como se vê, é complexo, mas não insolúvel. Poema e letra de música são, observadas algumas especificidades, arte da palavra, literatura, portanto.

Nesse sentido, lancemos mão do próprio texto de Gilberto Gil. Em Domingo no parque, por exemplo, uma das canções fundantes do tropicalismo, deparamos com um poema em que sua força de sentido vai além da musicalidade (que, por sua vez, independe do código musical a que está originariamente atrelado). Nele, agora me refiro ao texto verbal (do ponto de vista semiótico existem outros tipos de texto), pode-se perceber como é particularmente expressivo o uso de recursos próprios de outros códigos, o cinematográfico, no caso em exame. A propósito, são extremamente felizes as palavras de Fred de Góes, professor de Teoria Literária da UFRJ, em trabalho importante sobre a obra de Gilberto Gil: “… após situar as personagens e descrever o cenário onde a ação se desenrolará, o compositor passa a narrar os fatos, empregando a técnica de montagem em pequenos flashes. Além da letra e melodia, o compositor junta ruídos, palavras e gritos sincronizados às cenas descritas, evocando realisticamente um parque de diversões”.

O texto está dividido em seis estrofes irregulares, de quatro, sete, onze, dez, doze e quatro versos, respectivamente. Nas três primeiras estrofes predomina o ritmo narrativo/descritivo: na primeira delas, “O rei da brincadeira – é José / O rei da confusão – é João / Um trabalha na feira – é José / Outro na construção – é João”, as personagens são apresentadas.

Na segunda e terceira estrofes, o poema abandona o tom descritivo e passa à ação, sutilmente enriquecida pela revelação do caráter de cada personagem, José e João, a que se soma Juliana, objeto de desejo que leva ao conflito instalado na estrofe seguinte, a quarta do poema, além de situar o cenário, o parque de diversões, no qual se instalará o componente dramático central da narrativa: “O José, como sempre, no fim de semana / Guardou a barraca e sumiu. / Foi fazer no domingo, um passeio no parque, / Lá perto da boca do rio. / Foi no parque que ele avistou / Juliana, / Foi que ele viu / Juliana na roda com João, / Uma rosa e um sorvete na mão. / Juliana, seu sonho, uma ilusão, / Juliana e o amigo João. // O espinho da rosa feriu Zé / E o sorvete gelou seu coração. / O sorvete e a rosa – ê José / A rosa e o sorvete – ê José / Oi dançando no peito – ê José / Do José brincalhão – ê José / O sorvete e a rosa – ê José / A rosa e o sorvete – ê José / Oi girando na mente – ê José / Do José brincalhão – ê José”.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

MAIS Notícias
Eis a [velha] questão
Eis a [velha] questão

A semana que termina marca também o final da mais abjeta campanha política de que se tem notícia. Em São Paulo, mais importante cidade do país, durante debate em que se devia apresentar propostas de governo, discutir problemas da população e apontar alternativas de...

A política e a politicagem
A política e a politicagem

Fiz oito anos na antevéspera do golpe de Estado de 64. Àquela época, os jornais não circulavam nas cidades do interior, não havia tevê e as notícias chegavam até nós através do rádio. Como morássemos ao lado de Aluísio Filgueiras, velho comunista, num tempo em que ser...

DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES
DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES

  Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música “Paralelas”, para a qual diz ter escrito outro final, já...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *