A eleição de Gilberto Gil para a Academia Brasileira de Letras, na esteira do que já ocorrera com relação a Fernanda Montenegro, há uma semana, serviu para alimentar a velha discussão: o que é literatura? A pergunta, se atrelada a definições ditas clássicas, por certo ensejará um tremendo desconforto, uma vez que a produção dos dois artistas recém-eleitos, em termos rigorosamente literários, não pode ser considerada tão significativa – cada um deles publicou apenas um livro.
Se formos além dos conceitos tradicionais que os manuais de estética e teoria da literatura atribuem à grande ao termo literatura, no entanto, haveremos de concluir: literatura é algo muito mais abrangente. O teatro e a música, assim, estão de tal forma ligados à arte literária que não é muito compreendê-los como extensão daquilo que, historicamente, se convencionou chamar de literatura propriamente dita. Indago: o que são o texto dramático e as letras de música, ambos nascidos do uso estilizado da linguagem verbal?
Num tempo em que as linguagens estão fortemente entrelaçadas, portanto, é estreito defender a ideia de que as fronteiras entre literatura, teatro, música, cinema, artes visuais e outras estéticas constituam muros indevassáveis, ao ponto de entendê-las, unicamente, como realidades autônomas.
Sob este aspecto, por exemplo, como avaliar a atuação de um ator num filme, se não com os instrumentos da análise dramática? Como se falar de ritmo, cadência, musicalidade de um poema ignorando-se os elementos da estética musical? Em que sentido não é literatura a letra de uma composição como Super-homem (Quem dera / Pudesse todo homem compreender / Oh mãe quem dera / Ser o verão o apogeu da primavera / E só por ele ser) ou Drão (Quem poderá fazer aquele amor morrer / Nossa caminhadura? / Dura caminhada / Pela estrada escura), cuja estrutura, carpintaria verbal e jogo de linguagem saltam aos olhos de qualquer ouvinte mais atento como literatura de fina qualidade?
A trajetória artística de Fernanda Montenegro, por sua vez, num tempo de irrefreáveis trocas intersemióticas (que só ampliaram as potências e o valor de cada estética), está e esteve sempre marcada pela presença de obras de gente como Shakespeare, Calderón de La Barca, Samuel Beckett, Sófocles, Nelson Rodrigues, August Strindberg, Edward Albee, Bernard Shaw, Simone de Beauvoir e tantos outros grandes escritores, que será grotesco fechar os olhos para a sua notável contribuição, como artista extraordinária que é, para aquilo que se deve entender por literatura em toda a sua beleza e imortalidade.
Quanto a Gilberto Gil, em que pese a sua maior visibilidade como cantor e compositor, sugiro que se leia o seu Todas as Letras (1996), conjunto de letras produzidas por ele, que, mesmo se submetidos ao exame teórico mais especializado, constitui poesia da maior qualidade.
Aos 79 anos, ex-ministro da Cultura e um dos expoentes do movimento tropicalista, surgido em São Paulo no final da década de 60, Gilberto Gil ocupará a cadeira de número 20 da ABL, deixada pelo jornalista Murilo Melo Filho e, ironicamente, ocupada antes, frise-se, pelo general e ex-ministro do Exército Lyra Tavares. Deste, até onde sei, deve-se em parte a autoria do AI-5 e a condenação do compositor baiano, agora imortal, ao degredo nos tempos sombrios da ditadura implantada no país com o golpe de 1964.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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