O abismo escuro

12/09/2020

“O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade, e saio da vida para entrar na História”.

Muitíssimo conhecida, a sentença desfecha a carta-testamento de Getúlio Dornelles Vargas, em 1954, pouco antes de desferir contra o peito o tiro que o levaria à morte. Bem escrito, o texto reedita, mutatis mutandis, a mesma concepção do suicídio por que se orientaram poetas importantes da segunda geração romântica, a geração do Mal do Século, em diferentes países. Entre esses, a fuga da realidade se dava por três caminhos: a idealização do mundo, a toxicomania (aqui incluído o alcoolismo) ou o suicídio, aceito como um ato de coragem e desapego.

Por iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria e do Conselho Federal de Medicina, como forma de estimular a prevenção ao suicídio, o Brasil dedica o mês inteiro a discutir o tema. Em outros países, sabe-se, o debate tem como referência a data em que escrevo esta coluna: 10 de setembro. O descompasso entre o que faz o Brasil e o que fazem outros países, diga-se em tempo, vem sendo objeto de discussão entre os especialistas: estender a duração do debate em torno do suicídio pode constituir um desserviço à causa, contribuindo para o disparo do gatilho que fará crescer o já expressivo número de casos verificados a cada ano no Brasil? A questão, como se vê, é complexa, e exige um aprofundamento do debate.

Em temporada de estudos na Suíça, há muitos anos, sob o peso doloroso de um caso na família, dediquei-me a ler sobre o suicídio, a procurar entender suas possíveis causas, acompanhando a forma como se lidava com o problema num país de primeiro mundo como aquele em que estava, rico e exemplarmente atento aos problemas de saúde da população. Curiosamente, era por volta da segunda metade dos anos noventa, a Suíça apresentava números alarmantes de casos, não sendo permitido à imprensa divulgar sua ocorrência na maior parte dos cantões, como são chamados, desde 1948, os membros federativos no país. Cria-se, à época, que sua simples divulgação poderia resultar num incentivo a novos casos. Com a palavra, os especialistas.

Na contramão do que faziam os suíços, há aqueles que defendem a sua divulgação e o objetivo enfrentamento do problema. Advertindo-nos de que é delicada a diferença entre informar e aterrorizar, Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, professa a necessidade de que se discuta o suicídio com cautela, sem jamais lhe negar espaço para o debate, a busca de alternativas de ação e, sobretudo, determinação para identificá-lo como um problema de saúde pública. Ela defende, ainda, a criação de uma central exclusiva para o suicídio, uma vez que o CVV, Centro de Valorização da Vida, abrange outras formas de sofrimento além da depressão, uma das causas mais recorrentes do suicídio.

De ato heroico, fruto do estoicismo que levaria o homem a agir com absoluta isenção, na linha do que afirma a carta de Getúlio Vargas e tantos outros casos registrados entre pessoas famosas (ocorre-me lembrar aqui o que fizeram o escritor Stefan Zweig e sua mulher, em 1942), ao escapismo por que se deixaram levar os poetas ultrarromânticos, incapazes de aceitar a realidade, o suicídio é, antes de qualquer outra coisa, um desafio inadiável para todos, autoridades de saúde, estudiosos e a família. Detectar sinais, que nem sempre existem para olhos menos atentos, é um caminho. O diagnóstico nem sempre é possível, dizem os especialistas, e difundir a falsa ideia de que a maioria dos casos poderia ser evitada, só aumenta o sofrimento das pessoas.

Num momento particularmente difícil por que passa o Brasil, com desemprego crescente, assustador empobrecimento da maior parte da população, desajustes morais que resultam em atos de racismo, homofobia e outros tipos de intolerância, são recorrentes os conflitos e distúrbios psiquiátricos que apontam para o abismo escuro como a única saída. É hora de lançar luz sobre o problema.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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