Esta semana dei-me a rever filmes de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, dois dos gênios da sétima arte. Eram meus cineastas preferidos, supostamente pelas razões que, na perspectiva de cinéfilos da atualidade, os tornavam “chatos” e “monótonos”: a valorização do texto; a profundidade da abordagem dos grandes conflitos humanos; a exploração do tema da incomunicabilidade, aliados, obviamente, a um rigor estético que fez dos dois realizadores casos à parte na história do cinema. Não esquecendo, claro, a irretocável direção de atores, emblematicamente conduzidos em filmes memoráveis como Eclipse, de Antonioni, e Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman. Deste, revi por último, em DVD, exatamente Cenas de um Casamento, com atuações notáveis de Erlan Josephson e Liv Ullmann.
Saudosismo à parte, considero que não se fazem mais filmes como antigamente. É rever e constatar, que me perdoem os que aplaudiram à exaustão Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, vencedor de sete estatuetas do Oscar 2023 – longe das expectativas deste velho amante do cinema.
Voltemos a Cenas de um Casamento. Na linha do que fizeram à perfeição Antonioni e Roberto Rossellini, o filme narra a história de Marianne e Johan, cuja vida de casados parecia exemplar, até que o segundo arranjasse uma amante e a vida se tornasse um verdadeiro inferno na vida do casal. Tudo num ritmo lento, suave, e numa dicção tensionada com que Bergman expõe as feridas do relacionamento. Jogo de idas e vindas, de altos e baixos, de contradições surpreendentes, de passionalidades desenfreadas como é comum quando homem e mulher decidem pela vida a dois. Sem idealizações, sem panos mornos na chaga aberta, sem virar o rosto para o lado doloroso da vida.
O filme, sabe-se, como a tornar evidente as projeções freudianas do cineasta sueco na trajetória dramática percorrida pelas personagens, teria continuidade em outra obra-prima de Bergman, Sarabanda, de 2003, em que Marianne e Johan se reencontram trinta anos depois da separação. Para a realização desse projeto, não à toa o diretor convidaria para interpretar Marianne a atriz Liv Ullmann, ex-mulher e, por longo tempo, objeto de sua paixão doentia, segundo revelaria em livro a própria atriz. É curiosa a forma como Liv Ullmann descreve momentos da filmagem de Sarabanda: “Como o filme foi feito com câmera digital, Ingmar ficava longe da câmera, olhando no monitor num canto do estúdio. Nos filmes antigos ele estava sempre perto dos atores e eu sentia que ele era o meu melhor espectador. Mas, apesar da distância, nós conseguimos estabelecer uma comunicação. Era como se a gente se comunicasse novamente por sinais de fumaça”.
Mas é de Cenas de um Casamento que estamos falando.
Além de uma prodigiosa obra-prima, o filme resulta numa estetização do debate sobre o amor em toda a sua complexidade, tal qual o conhecemos na vida de todos os casais. Numa das cenas mais belas da película, Marianne recebe em casa uma entrevistadora que produz uma matéria sobre relacionamentos e tenta definir para ela o que é o amor: “… ninguém nunca me disse o que é o amor. E não tenho certeza se precisamos saber. Mas se quiser uma descrição detalhada, veja na Bíblia. Lá, Paulo descreve o amor. O problema é que sua descrição nos coloca em xeque. Se Paulo estiver certo sobre o amor, ele é tão raro que ninguém o vivencia. Mas, em discursos de casamento e outras ocasiões especiais, funciona muito bem. Acho que basta ser gentil àqueles com quem vivemos. Afeto também é bom. Humor, amizade, tolerância. Ter expectativas sensatas. Tendo isso, o amor não é necessário”.
Bergman a nos ensinar que o simples e profundo podem caminhar juntos. Que grande artista.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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