O CONSOLO DO “MESMO”

“Os dias vês fugir, voar as horas...” Bocage

21/01/2023

Lembro-me do ano de 2003. Eu escrevia a minha tese de Doutorado. Modéstia às favas, sempre me orgulhei do bom domínio do idioma. No entanto, naquele ano, meu orientador – homem cordialíssimo e muito zeloso do vernáculo – corrigiu-me um erro persistente. Peccavi! Mea culpa! Errei, deveras. Não foi erro grave, mas erro foi. E ocorreu muitas vezes nas quase quatrocentas páginas da tese.

Tratava-se do famigerado “mesmo”, pronome demonstrativo de reforço, que não pode ser empregado em nossa língua como mero pronome retomando o termo antecedente. Permitam-me explicar. Aula de português sempre é bom. Na frase: “Aprecio o estudo, pois o mesmo é edificante” há o referido erro. O correto seria: “Aprecio o estudo, pois este é edificante”.

Algum tempo depois, já corrigida e defendida a tese em 2004, detive-me a pensar ainda sobre o “mesmo”. Por que eu cometera tantas vezes em meu texto esta falha? Ocorreu-me então que a linguagem espelha estruturas profundas psicológicas. Assim fiz minha própria análise e elaborei a teoria do Consolo do Mesmo.

O pronome demonstrativo, mesmo empregado equivocadamente, aflorava em minha escrita frequentemente porque significava uma eclosão do meu inconsciente afirmando a ideia de rotina, de permanência, algo como uma ilusória pré-eternidade.

Chesterton, o admirável escritor inglês, disse que Deus exultava na monotonia. Que, maravilhado, o criador dizia para o sol todos os dias ao amanhecer: “faça isso de novo!” Compreendi tudo perfeitamente. Os grandes dias não são os festivos, os refulgentes. Os grandes dias são os cor de cinza. Os momentos de apaziguada rotina, o trabalho diário, as costumeiras orações. As leituras de monge, as pacientes traduções; regar as plantas, alimentar os pássaros. As pequenas obrigações diárias. Tudo isso é a nossa cota de Paraíso.

Nosso espírito, tal como Ícaro em sua ruína rumo ao sol, deseja ardentemente o novo, o movimento, a mudança. Isto resulta sempre em perda e melancolia. A Idade Média nos ensinou: Vera et magna sapientia aeterna repetio est. A verdadeira e grande sabedoria é uma eterna repetição.

Encontraremos a paz rejeitando a mudança; preservando a nossa essência. O movimento leva ao caos. A mudança nos perde. Fiquemos com o nosso parco e redentor consolo do Mesmo! Um pouco de Deus todos os dias…

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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