Se Nelson Rodrigues foi o maior autor do teatro nacional, não se discute que José Celso Martinez Corrêa foi o maior realizador, tomando-se o termo em toda a sua abrangência. É que Celso, ao lado de ser também ele escritor de textos para teatro, absorveu a arte cênica como poucos o fizeram ao redor do mundo: foi ator, diretor, cenógrafo, iluminador, compôs e concebeu as mais impensáveis formas de tratar o objeto dramático, indo de Stanislávski a Brecht, de Meyerhold a Grotowski com a mesma intimidade. Nunca, no entanto, tomando-os ao pé da letra, capitulando aos métodos por eles adotados. Nunca. Se sua formação absorvera em profundidade o que havia de essencial em suas diferentes formas de conceber a arte teatral, bebendo na fonte original de suas teorias, sua inquietude estética ia muito além disso. Era visceral, talvez este o adjetivo que melhor possa definir o artista inigualável que sempre foi. Perdê-lo, em circunstâncias tão trágicas que parecem reeditar algumas de suas performances, significa a morte de um teatro que jamais poderá ser encenado outra vez sem a sua presença.
Desde os anos 60, quando fundou o mais importante grupo de teatro brasileiro, o Teatro Oficina, tendo a seu lado Renato Borghi, Etty Fraser, Fauzi Arap, Ronaldo Daniel e Amir Haddad, para citar nomes de maior peso, Zé Celso foi figura central do que se fez de mais relevante nos palcos do país, sem falar o contingente de artistas gigantescos que passariam por suas mãos, como Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Zezé Mota, Marília Pêra, Othon Bastos, Antonio Pedro ou Marcelo Drummond, com quem sua relação de absoluta entrega ao teatro se confundiu com relação passional, também na vida íntima, ao longo dos últimos trinta anos, e com quem se casaria formalmente há coisa de um mês.
Sua montagem da peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, tanto quanto a de Vestido de Noiva, por Ziembinsky e Santa Rosa, figura como divisor de águas na história das artes cênicas no Brasil. Trata-se não apenas da mais completa leitura já feita de um texto teatral cujas qualidades artísticas vão muito além do que se pode decodificar a partir das palavras. Há nessa leitura a compreensão mais profunda daquilo que a arte dramática é capaz de fazer, refletindo na mesma proporção e em igual nível estético a realidade brasileira e as inquietações existenciais do homem.
Se havia no texto o que se pode definir como a função catártica da arte, pois que o texto retrata os conflitos pessoais do próprio autor, enredado em dificuldades financeiras e distúrbios pasiquiátricos indisfarçáveis (Oswald de Andrade fora arruinado pela crise mundial de 1929), José Celso foi capaz de perceber nas entrelinhas da construção literária oswaldina as estratégias narrativas que dialogavam estreitamente com as propostas do Teatro Oficina, realizando um espetáculo disruptivo para os padrões estéticos então dominantes no teatro brasileiro.
Não assisti ao espetáculo presencialmente, nem idade tinha para poder fazê-lo, mas mergulhei em sua fortuna crítica com a avidez de quem, ainda que à distância, parecia compreender a exata dimensão do acontecimento.
Como professor do curso de Artes Cênicas do IFCE, ministrando a cadeira de Análise do Texto Dramático, contando com a participação indispensável dos alunos, fui com eles às profundezas de um espetáculo/texto que se coloca em lugar sob muitos aspectos ainda inalcançado em termos teatrais. Para tanto, e supostamente equivalente em força dramática e conteúdo político, contávamos com o filme plasmado no texto oswaldino, irrepreensível adaptação da peça de Oswald de Andrade, com justiça premiado em diferentes festivais, a exemplo do Festival de Cinema de Gramado como melhor montagem e melhor trilha.
Há muito tempo, em viagem a São Paulo, fiz questão de visitar o Teatro Oficina, localizado no centro da cidade. Sua arquitetura, forjada na prancha de ninguém menos que Lina Bo Bardi (e considerada pelo jornal britânico The Guardian, em 2015, o melhor projeto arquitetônico do mundo), é já por si “teatral”, como a seguir em sua estrutura desconcertante o próprio “desconcerto” de um artista inclassificável.
Em meio ao espaço cênico menos convencional que se possa imaginar, entre andaimes que nos remetem a uma parede envidraçada, cujas sugestões ilusórias parecem encenar elas mesmas um espetáculo, para o meu desalento, José Celso ali não se encontrava. Havia ali, no entanto, o que, na falta da palavra exata, no momento em que sento à frente do computador para escrever a coluna de hoje, desenha-se em minhas recordações como a figura de Dioniso, o deus do teatro grego que José Celso Martinez Corrêa incorporou sempre, no palco e na vida dionisíaca que ao mesmo tempo encantou e provocou as mais abjetas reações num Brasil que precisamos esquecer.
É que, enquanto existir em algum lugar e em qualquer tempo o que se define como Teatro, haverá um pouco deste artista despudorado que pôs por terra a hipocrisia e a desfaçatez de uma sociedade aqui e além adoecida, como a de agora.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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