Morreu há pouco Arnaldo Jabor. Se não me agradava o analista político, encantava-me o artista. Seu texto, muito embora ferino, maldosamente mordaz, tinha uma força estilística desconcertante. Refiro-me ao jornalista midiático, pois que o cronista, pelo viés do gênero enquanto literatura, era leve, lúdico, solto, original, criativo. Sedutor. Como cineasta, figurará sempre entre os grandes. Um esteta, um Bergman dos trópicos.
Quando professor, aos tempos da universidade, na cadeira de Estética do Cinema, usei e abusei de alguns dos seus filmes para explorar com alunos o seu domínio da gramática cinematográfica, e a sensibilidade com que sabia unir a forma ao conteúdo, emprestando à película, invariavelmente, uma dimensão estética ao mesmo tempo bela e eivada de sentidos.
Por força do ofício, portanto, vi e revi incontáveis vezes muito de sua produção, com destaque para “Toda Nudez Será Castigada” (1973), adaptado da obra homônima de Nelson Rodrigues, e “Eu Te Amo” (1981), que me permitam alguma dose de subjetivação, o mais belo filme brasileiro dos anos de 1980.
Do primeiro, guardo, inapagáveis, sequências antológicas, verdadeiras lições de como fazer cinema, a exemplo da abertura do filme: ouve-se o bandoneon de Astor Piazzola a ditar o ritmo com que se desenrola a narrativa, enquanto um carro de luxo se desloca em direção ao subúrbio; o motorista, que logo se saberá uma das personagens centrais, trajando um terno bem cortado, conduz o veículo pelo jardim de um casarão antigo, a câmera registrando com sutileza os sinais da decadência familiar – e a espessura dramática do roteiro impondo-se ao espectador em pouco mais de cinco minutos do desfile fílmico, como a nos lembrar: se a literatura se escreve com palavras, o cinema escreve-se com planos (redução do campo de visão pela objetiva), articulados a fim de contar uma história.
O travelling, no aeroporto Santos Dumont, quando Geni (Darlene Glória, numa interpretação soberba), personagem principal, vê Serginho embarcar com o ladrão boliviano com quem a traíra, é de tirar o fôlego: o espectador não vê o que a personagem vê, mas sente a dor do abandono através de seus olhos.
Fiel ao texto da peça, Jabor mistura elementos trágicos ao humor rodrigueano para realizar, em 103 minutos de filme, uma das mais felizes adaptações do nosso maior dramaturgo, e um dos momentos clássicos da cinematografia brasileira.
Versátil, Jabor produz, escreve o roteiro, dirige o filme, cuja fotografia (Lauro Escorel), montagem (Rafael Justo Valverde), trilha sonora (Paulo Santos), direção de arte (Régis Monteiro) e elenco (Paulo Porto, Paulo César Pereio, Darlene Glória, Isabel Ribeiro, Elza Gomes…) harmonizam-se numa experiência estética quase irretocável.
Que dizer de “Eu Te Amo”, de sua beleza plástica, de sua densidade dramática, da profundidade com que Jabor traz para o plano artístico a bergmaniana desventura amorosa de um homem, Paulo (Paulo César Pereio) abandonado pela mulher em completa ruína financeira, para quem o encontro com a prostituta Mônica (Sônia Braga), também ela abandonada pelo amante, parece ser a única saída?
A sequência em que, seminus, Paulo e Mônica imitam primatas, devorando frutas, nas preliminares do sexo selvagem a que se entregam tendo ao fundo o espaço abissal, ameaçador e belo através da vidraça; ou naquela em que se lambuzam de tintas no apartamento em obras em pleno coito, entraram para a história do cinema brasileiro como exemplos de uma arte soberbamente poética.
O Brasil perde um jornalista polêmico, um cronista de imenso talento, um cineasta quase inigualável do ponto de vista estético, na forma de organizar a trama, de compor imagens, na escolha de ângulos, enquadramentos, movimentação de câmera no plano, luz, tudo, tudo… Um cultor do belo em tempos tão difíceis!
Já não bastasse o abismo infinito a que fomos arremessados.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
0 comentários