O homem chegou no horário combinado. Ainda que não usasse o seu kit de mendigo habitual, sua presença não passaria desapercebida. Tinha mais dentes que boca, de modo que sua figura trouxe um ar sombrio ao quiosque surrado. Eram seis da manhã.
Avistou uma figura totalmente distinta: um cavalheiro de Polo, esporte fino e sapatos devidamente engraxados. Topete longo, dentes brancos e corretos.
O homem bem vestido apontou para a cachaça ao lado da garrafa de whisky doze anos que trouxera do carro.
– Pega. Pedi para você.
– O senhor vá desculpando, mas hoje vou recusar; não bebo quando tô com uns troços na cabeça.
– Engraçado. Todo mundo bebe justamente para tirar os “troços” da cabeça, disse o cavalheiro fazendo o gesto das aspas.
– Eu não senhor!
– Nós dois valorizamos o tempo, e não gostamos de arrodeios, mas fiquei curioso.
– Doutor, isso é desde criança. Não carece de explicar. Mas ontem sonhei com minha mãezinha – que Deus a tenha!
– E aí?
– Ela estava ajoelhada sobre a minha cama enquanto eu cochilava. Ela dizia: “Deus, Zé é teu. Zé, o filho de Firmino. Não deixa que nada de mau aconteça”.
– Já te contei que seu pai faz um serviço para mim há muitos anos? Mas e aí? O que acha que significa?
– Não sei não, Doutor. Mas sei que se eu beber hoje, vou fazer uma quenga ficar de joelhos e rezar, igual a mãezinha, ou pior…
O homem bem vestido fez um sinal para que o outro não continuasse. Ficaram em silêncio. Um temia o que outro podia fazer.
O homem bem vestido não tirava os olhos dos dentes enormes e amarelos do outro.
Tomou uma doze do whisky e retornou:
– Como ela está?
– Como Deus quer. Levei a comida, a água e o resto das coisas que o senhor mandou.
– Tudo isso vai acabar.
– É bom mesmo, doutor. A cidade só fala nisso.
– Sei que você deve ter visto a recompensa.
– Ouvi no rádio que dobrou.
– Não se engane. Você seria preso. Eles dariam um jeito de te achar. E a mim também.
– Eu sei, Doutor.
– A família dela, além de rica, tem influência na cidade. Você não dura um dia na cadeia.
– Carece de lembrar não, Doutor. Só queria um pedido.
– Pode falar.
– Posso passar ela de outro jeito?
– Tá arregando? Teu pai nunca arregava!
– Não, doutor. É que de faca dá mais trabalho. Um tiro é um tiro. Pimba! Pronto.
– Outro dia falamos sobre o fim dela.
– Quantos dias ela tem?
– Um mês.
– Diacho!
– O que foi agora?
– Doutor, me dói fazer isso. Ela geme muito, me olha com um olhar que me enche de pena. E eu sempre matei macho…
– Você é feminista? Que se foda! Nestes tempos difíceis, até o médico dela faz o serviço.
O dono do bar notou que o cavalheiro bem vestido se alterara.
– Um mês. Que eles sofram! Que colem seus cartazes, façam seus videozinhos com cara de choro, comprem às rádios, à internet, o diabo! Que eles sejam capados como eu fui no divórcio.
O vaivém de carros já despontava na avenida.
– Doutor, só mais uma coisa e vou embora para continuar o serviço.
O homem bem vestido assentiu.
– Ela não come ração? Botei para ela uma que peguei na minha sogra, da boa, e ela não comeu.
– Come não, é fina como a dona: só come comida, e da boa!
Ao dizer isso, o homem distinto caiu na gargalhada; uma gargalhada gostosa, atroz, malíflua e sanguinolenta. Seus dentes brancos brilhavam em frontal contraste aos do outro, que eram feios e grandes.
José ou Zé, o filho de Firmino, o pistoleiro, lembrou-se da prece de sua mãezinha. Podia ser que do outro lado Deus ouvisse melhor.
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