O Fim do Mundo do Fim

29/07/2023

Considerado um dos maiores escritores latino-americanos, Julio Cortázar imaginou um mundo em que os livros ocupariam todos os espaços – e se reproduziriam para além dos rios e das praças, das ruas e das casas. Na contramão do realismo fantástico cortaziano, o escritor norte-americano Ray Bradbury criou o romance Fahrenheit 451, inventando uma (ir)realidade distópica em que o trabalho dos bombeiros consiste em queimar livros, uma forma de combater o pensamento crítico e a gestação das ideias. A obra foi adaptada luminosamente para o cinema por François Truffaut. Platão, irônico e certeiro, n’A República, idealizando a cidade perfeita, propõe a expulsão dos poetas, falseadores da realidade. Cervantes, no Dom Quixote, elaborou a mais bonita das personagens, cujo hábito de ler novelas de cavalaria, na fina ironia cervantina, o levaria à loucura. Emma Bovary, de tanto ler, deu-se aos devaneios dos apaixonados, na elegância inigualável da pena de Flaubert. Sherazade, n’As Mil e Uma Noites, narrando histórias impensáveis, livrou-se da sentença cruel. Che Guevara, ao lado de rifles e munições, com que sonhava a possibilidade de uma sociedade mais justa e mais humana, conduzia uma bolsa com livros, até que o tiro perverso lhe roubasse a vida.

Quanto a mim, simples leitor e pobre escriba, desde muito cedo convivo com eles, os livros, seres mágicos e sedutores, e os tenho, sempre, ao alcance da mão. Digo para os amigos, aturdidos ante a quantidade deles ao me visitar: “Veem? Não moro numa casa, escondo-me numa biblioteca”.

Os primeiros, ainda adolescente, comprei-os com o dinheiro curto da mesada, sacrificando sanduíches e noitadas, que me perdoem o mau jeito da rima. Hoje, são milhares, e estão por toda parte: na sala, no quarto de dormir, no corredor, na cozinha e até no banheiro.

Mas há, claro, o cantinho em que se organizam, descansam, dormem, trocam ideias, restaurando suas energias e potencialidades, até que eu, sem mais nem menos, os desperte na consulta insaciável de todos os dias. É o que chamam, os sedentos de dar nome às coisas, biblioteca, sob o olhar inquisitorial de Michel Foucault.

No meu caso, declaro, os dedos em cruz: nunca foi o espaço destinado a guardar livros, mas aquele em que pulsa a vida em sua total complexidade, habitado por gente que me viu e fez crescer.

De cor, sei seus nomes e conheço suas vontades, seus sonhos, suas frustrações, seus mistérios.

Aqui, na altura dos olhos, sondando as profundezas da alma humana, deparo com Dostoiévski – e outros russos, por óbvio: Maksim Gorki, Alexandr Púchkin, Turguêniev, Nikolai Gógol, Tchekhov, Maiakóvski; um pouco abaixo, titubeando entre o ser e o não ser, repousa Shakespeare; ali, um tantinho amarrotado, vê-nos, sarcástico e impostor, Machado de Assis; acolá, entre pessimista e desmistificador, está Franz Kafka, contorcendo-se em metamorfoses. Na solidez do seu silêncio, velho detentor da razão, repara-nos, de soslaio, Immanuel Kant, indiferente às luzes que emanam dos olhos de Voltaire, Montesquieu, Rousseau, tão próximos dele, quase ao lado. E aquele barbudo alemão, que renasce das cinzas em sua genialidade?

Andemos um pouco, veja com quem topamos agora: pois que é ninguém menos que Lev Tolstói, altivo como um gigante, imponha-se a guerra ou impere a paz. E ali, olha quem nos acena, sorrateiro e namorador, propondo um trago, quem sabe derramando-se, com igual habilidade, num galanteio de fina poesia ou tocante prosa, o Vinicius de Moraes; a dois passos pequenos, espreita-nos, de entre quatro paredes, num surto existencialista, Jean-Paul Sartre, fazendo pouco de Camus, só compreendido, em sua verdade incontornável, tal qual Sísifo, por Simone de Beauvoir, de quem permanece amigo. Por coincidência, vê, aqui ela está, deslumbrante e bela, a discorrer sobre o segundo sexo. Sem esquecer delas, que ali estão, leves e soltas (lindas!), Cecília, Clarice, Hilda, Lygia Fagundes Telles…

Por oportuno, paremos para um café (ou prefere um vinho?), que já percebo, enciumado, o Swann, de Marcel Proust, por sua vez nostálgico, mordiscando, malemolente, seu madeleine, como se em busca do tempo perdido; já não nos bastasse, nesse sentido, o baú de ossos do inigualável Pedro Nava… E Drummond, escuta com ele, amigo querido, o que lhe diz a amendoeira, esgueirando-se, solene, por entre as pedras do caminho. Mais adiante, não repare, em trajes de gala, arrogantes, veem-se os livros de história da arte – em gramaturas nobres do papel couché, é claro.

Ah, os livros…

Não raro, brincam de esconde-esconde, travessos, enquanto os procuro, quase desesperançado. Eis que os encontro, como num passe de mágica, quase sempre empoeirados e sujos, a querer de mim o carinho do espanador, a maciez do pano de limpar. E, por falar nisso, por onde anda o Saramago, nas sombras da caverna, ou mareando em sua jangada de pedra? Repara, arrastando-se pelos cantos, o Moreira Campos! E aquele lá, descobrindo a eterna novidade do mundo, “serão” Fernando Pessoa?  Ele mesmo! E os outros! Sem esquecer o Eça… O Jorge Luís Borges… O Hemingway e Dos Passos…

Uma biblioteca, já o disse, é o lugar em que pulsa a vida, onde apenas repousam, mesmo que em sono às vezes prolongado, os meus melhores amigos. Sem eles, não saberia viver. Se condenados fossem a desaparecer, por certo, desapareceria com eles. Mas os sei, felizmente, “indesaparecíveis”, mesmo no distópico livro de Bradbury, onde ficaram, imorredouros, na memória de mulheres e homens, a narrar suas lições para o sem-fim dos tempos.

 

*O título é uma referência ao texto de Julio Cortázar, do livro Histórias de cronópios e de famas.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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