O fogo passageiro da paixão

24/12/2022

Em Cinema Paradiso há uma cena memorável. O projecionista Alfredo, cego e alquebrado, narra para Totó uma singela história de amor: um soldado se apaixonara pela filha de um rei, declarara-lhe o seu amor impossível. Mas a princesa, em dúvida, pede um tempo para decidir se o aceitaria ou não.

Cem dias, é o prazo que estabelece. Em caso afirmativo, no momento certo, apareceria no balcão do palácio. Se não o fizesse, é que lhe teria o ‘não’ como resposta. E o soldado fica ali, exposto às mais severas intempéries, tempestade ou calor escaldante, o frio que lhe atravessa o corpo, a fome e a sede, sustentando-se na esperança de vê-la aparecer. Heroicamente, conta os dias que faltam. Chegado o nonagésimo nono dia sem que a jovem aparecesse no alto do balcão, o vulto apenas esboçado através da veneziana, eis que o soldado abandona o posto e parte.

– “Não me pergunte por quê!”, diz Alfredo ao jovem amigo.

Arrisco minha interpretação. É que o soldado prefere levar consigo a esperança de que a mulher amada lhe aparecesse no centésimo dia. Para ele, como para todo ou toda amante, antes a dúvida que a desilusão. Que bela alegoria sobre a utopia da paixão.

Poesia à parte, na vida real é assim. Ele espera o telefonema que não acontece. Ela abre vezes sem conta sua caixa de e-mail, mas o recado não está lá. Ele olha a cada minuto o display do celular, mas não há qualquer mensagem. Ela marcou o encontro no barzinho, mas ele não veio. E os dias se vão passando sem a novidade tão aguardada. Como na história do soldado do belo filme de Giuseppe Tornattore, chega o nonagésimo nono dia na vida dos amantes, e ele ou ela vive o desespero da difícil decisão. Esperar o centésimo dia e enfrentar a realidade e a dor do amor não correspondido ou bater em retirada? Carregar a dúvida do improvável, ou começar a sufocante travessia para o esquecimento – e apagar da mente o que insiste em ficar no coração?

Para Nietzsche, o filósofo prussiano do século 19, a esperança é o pior dos sentimentos, pois só prolonga o tempo da dor. Em parte, fecho com ele, em parte não. No amor, passado o martírio de uma desilusão, a esperança pode ter uma outra face, mais otimista e mais certeira. E, invariavelmente, cedo ou tarde, tem! A felicidade vem, silenciosa e sorrateira, mas vem.

Fugaz.

Um dia, como disse numa outra crônica, O Ciclo Vicioso da Paixão, em livro publicado há anos, você, leitor ou leitora, depara com a boa nova. A atração se dá como em milagre: o pisar charmoso com que a viu atravessar a rua, quando o sinal fechou; a elegância com que ele se veste; a forma como ela atende ao telefone, como recompõe o cabelo ou renova o batom; a gentileza com que ele lhe segurou a porta do elevador; a textura da pele dela, a penugem dourada do bumbum, quando, displicente, na areia da praia, espalha o protetor; os olhos que você nunca viu iguais, quando, a pedido, abaixou os óculos de sol; a voz rouca com que se dirigiu ao garçom; a sensibilidade dele, a maneira como ela movimenta as mãos, enquanto conta uma história à amiga, tudo tudo pode acionar o gatilho…

E, sem avisar nem pedir licença, o coração vai batucar, os olhos ganhar novamente o inconfundível brilho.

O fogo passageiro da paixão.

Feliz Natal!

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

MAIS Notícias
Eis a [velha] questão
Eis a [velha] questão

A semana que termina marca também o final da mais abjeta campanha política de que se tem notícia. Em São Paulo, mais importante cidade do país, durante debate em que se devia apresentar propostas de governo, discutir problemas da população e apontar alternativas de...

A política e a politicagem
A política e a politicagem

Fiz oito anos na antevéspera do golpe de Estado de 64. Àquela época, os jornais não circulavam nas cidades do interior, não havia tevê e as notícias chegavam até nós através do rádio. Como morássemos ao lado de Aluísio Filgueiras, velho comunista, num tempo em que ser...

DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES
DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES

  Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música “Paralelas”, para a qual diz ter escrito outro final, já...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *