Em Cinema Paradiso há uma cena memorável. O projecionista Alfredo, cego e alquebrado, narra para Totó uma singela história de amor: um soldado se apaixonara pela filha de um rei, declarara-lhe o seu amor impossível. Mas a princesa, em dúvida, pede um tempo para decidir se o aceitaria ou não.
Cem dias, é o prazo que estabelece. Em caso afirmativo, no momento certo, apareceria no balcão do palácio. Se não o fizesse, é que lhe teria o ‘não’ como resposta. E o soldado fica ali, exposto às mais severas intempéries, tempestade ou calor escaldante, o frio que lhe atravessa o corpo, a fome e a sede, sustentando-se na esperança de vê-la aparecer. Heroicamente, conta os dias que faltam. Chegado o nonagésimo nono dia sem que a jovem aparecesse no alto do balcão, o vulto apenas esboçado através da veneziana, eis que o soldado abandona o posto e parte.
– “Não me pergunte por quê!”, diz Alfredo ao jovem amigo.
Arrisco minha interpretação. É que o soldado prefere levar consigo a esperança de que a mulher amada lhe aparecesse no centésimo dia. Para ele, como para todo ou toda amante, antes a dúvida que a desilusão. Que bela alegoria sobre a utopia da paixão.
Poesia à parte, na vida real é assim. Ele espera o telefonema que não acontece. Ela abre vezes sem conta sua caixa de e-mail, mas o recado não está lá. Ele olha a cada minuto o display do celular, mas não há qualquer mensagem. Ela marcou o encontro no barzinho, mas ele não veio. E os dias se vão passando sem a novidade tão aguardada. Como na história do soldado do belo filme de Giuseppe Tornattore, chega o nonagésimo nono dia na vida dos amantes, e ele ou ela vive o desespero da difícil decisão. Esperar o centésimo dia e enfrentar a realidade e a dor do amor não correspondido ou bater em retirada? Carregar a dúvida do improvável, ou começar a sufocante travessia para o esquecimento – e apagar da mente o que insiste em ficar no coração?
Para Nietzsche, o filósofo prussiano do século 19, a esperança é o pior dos sentimentos, pois só prolonga o tempo da dor. Em parte, fecho com ele, em parte não. No amor, passado o martírio de uma desilusão, a esperança pode ter uma outra face, mais otimista e mais certeira. E, invariavelmente, cedo ou tarde, tem! A felicidade vem, silenciosa e sorrateira, mas vem.
Fugaz.
Um dia, como disse numa outra crônica, O Ciclo Vicioso da Paixão, em livro publicado há anos, você, leitor ou leitora, depara com a boa nova. A atração se dá como em milagre: o pisar charmoso com que a viu atravessar a rua, quando o sinal fechou; a elegância com que ele se veste; a forma como ela atende ao telefone, como recompõe o cabelo ou renova o batom; a gentileza com que ele lhe segurou a porta do elevador; a textura da pele dela, a penugem dourada do bumbum, quando, displicente, na areia da praia, espalha o protetor; os olhos que você nunca viu iguais, quando, a pedido, abaixou os óculos de sol; a voz rouca com que se dirigiu ao garçom; a sensibilidade dele, a maneira como ela movimenta as mãos, enquanto conta uma história à amiga, tudo tudo pode acionar o gatilho…
E, sem avisar nem pedir licença, o coração vai batucar, os olhos ganhar novamente o inconfundível brilho.
O fogo passageiro da paixão.
Feliz Natal!
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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