Em inícios dos anos 70, sofri um grave acidente que me deixaria marcas no corpo. Durante algum tempo, certa tensão psicológica. Eu tinha 15 anos, era um tipo bonito e participara, como modelo, de pelo menos dois desfiles de moda. O que não fiz? Para o jovem inexperiente e vaidoso de então, as cicatrizes eram muito mais que sinais na pele, depois da ferida curada. Era uma lembrança dolorosa, traumatizante, estigmática, no corpo belo e viçoso do adolescente.
Um ano depois, por volta de 1973, começo uma série de viagens ao Rio de Janeiro para me submeter a cirurgias plásticas. Entre uma hospitalização e outra, aproveito a minha estada na cidade para me dedicar a uma das minhas maiores paixões: o Botafogo de Futebol e Regatas.
Ia com regularidade e assiduamente à sede de General Severiano, assistia aos treinos, fotografava com os jogadores, meus primeiros ídolos. Se hoje, amando com a mesma fidelidade o Botafogo, dou pouca importância ao futebol, colocando este interesse em seu devido lugar, à época era um torcedor fanático e, não raro, sabia de cor o nome de registro de todo o elenco alvinegro. Pasmem, de alguns, sabia com quem namoravam, com quem eram casados, de que pratos gostavam. Tolo fanatismo do menino que fui!
Botafogo! Botafogo! / Campeão – desde 1910. / Foste herói em cada jogo / Botafogo, / Por isso é que tu és / E hás de ser / Nosso imenso prazer / Tradições, / Aos milhões tens também. / Tu és glorioso / Não podes perder / Perder pra ninguém / Noutros esportes / Tua fibra está presente / Honrando as cores / Do Brasil de nossa gente / À estrada dos louros / Um facho de luz / Tua estrela solitária / Te conduz.
Cantava emocionado o hino de Lamartine Babo antes e depois de cada jogo. Minto: se o time da estrela solitária perdia, faltavam-me forças e caía (quase literalmente!) em prantos. Uma loucura, uma psicose. Uma paixão sem nome.
Ocorre-me, neste instante, lembrar do cronista Mário Filho: – “Ser botafoguense é mais do que pertencer a um clube, a um grande clube. É pertencer a uma casta, com o seu tipo especialíssimo, inconfundível.” Ou, para revelar uma marca realmente inconfundível de todo bom botafoguense, do seu irmão Nelson Rodrigues: “[…] há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal.”
Nada, não. O certo é que, naquela geração de fins dos anos 60 (o Botafogo fora bi-campeão da Taça Guanabara e do Campeonato Carioca, em 68), havia em General Severiano uma verdadeira máquina de fazer gols, e de evitar sofrê-los: Cao, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César.
Dia desses, revendo a história do alvinegro carioca, encontrei o “time de todos os tempos” escalado por um botafoguense célebre, o escritor Sérgio Augusto: Manga, Carlos Alberto Torres, Leônidas, Nilton Santos e Marinho Chagas; Didi e Gérson; Garrincha, Jairzinho, Heleno de Freitas e Paulo César.
Como se vê, o jornalista dá um jeitinho para ter no mesmo time Nilton Santos e Marinho Chagas, embora os dois atuassem na lateral-esquerda. Para não falar de Didi, que aparece na sua seleção como médio-volante. Coisas de botafoguense. Se é difícil, a gente dá um jeito!
Quanto a mim, até onde sei, constitui motivo de orgulho figurar como torcedor do Botafogo de Futebol e Regatas ao lado de gente que admiro pelo que realizaram fora das quatro linhas, como escritores, cineastas, jornalistas etc. Vamos citar alguns? Aí vai: João Saldanha, Olavo Bilac, Vinicius de Moraes, Glauber Rocha, Augusto Frederico Schmidt, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Antonio Candido, Armando Nogueira, Ana Botafogo, Beth Carvalho, Adriana Calcanhoto, Claudio Marzo, Paulo Betti, Visconde de Taunay, Agildo Ribeiro, Cid Moreira, Carlos Eduardo Novaes, Carla Camurati, Bernardinho e tantos e tantos apaixonados pelo Glorioso.
Para finalizar, coisa que só uns poucos amigos sabem: certa feita, me apresentei aos juvenis de General Severiano para pleitear um lugar como médio-volante. Cheguei a bater bola no dia do teste, mas, devido ao grande número de pretendentes, fui relacionado para o treino da semana seguinte. Exatamente a semana em que me submeteria à primeira de uma série de cirurgias plásticas, sobre o que já falei, no alto. Se seria ou não aprovado, são outros quinhentos. A bem da verdade, confesso, não era dos piores, e tratava a bola por você. Tinha com ela alguma intimidade.
Obs. Crônica publicada no livro Depoimento. Republico-a atendendo a uma provocação de outro botafoguense, entusiasmado com a volta do Glorioso à elite do futebol brasileiro.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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