O INQUISIDOR – Parte II

23/12/2023

“Its shadow upon life enough for thee”

Dante Gabriel Rossetti”

 

Amedrontava-se ainda mais o padre Rodrigo ao pensar na possível inocência de Anna. Seria concebível? Mas foram encontrados pelos menos dois sinais característicos de uma bruxa. Uma estranha marca de nascença em seu corpo e desconhecidas ervas em seus aposentos. Ademais, ele próprio assistira a um dos interrogatórios, as velas se apagaram sem nenhum vento na masmorra. Sim, havia a culpa sobre o corpo e a alma daquela jovem.

Nesse momento ela chegara à praça e a amarraram a um grosso poste com as mãos para trás. Vestia uma espécie de rústica túnica cinza bem limpa de mangas compridas. Estava magra, muito abatida e tinhas algumas manchas vermelhas no rosto. Havia também pelo resto do corpo, mas não era adequado vê-las. Sem dúvida eram fruto dos interrogatórios. Os cabelos cortados bem curtos e isto chamou deveras a atenção do Padre Rodrigo de Góis. Lembrou-se imediatamente de quando a trouxeram presa.  Seus cabelos estavam soltos, longos, fartos e negros como as asas do corvo. Anna tinha a estatura baixa, bem torneado o corpo e possuía uma voz peculiar. Um tom suave, algo metálico, um jeito de dizer forte e delicadamente cada sílaba das palavras. O padre nunca pôde olvidar o seu cabelo e aquela voz.

A judia tinha grandes olhos negros. Doces, inocentes, mas de algum modo incisivos. Agora estavam semifechados, mal se podia vê-los. O corpo pequeno amarrado e tendo abaixo uma grande pilha de madeira destoava do resto do cenário. Na multidão, uns gritavam, outros se apiedavam, outros riam, outros apenas olhavam indiferentes. Padre Rodrigo queria desesperadamente que aquilo tudo terminasse.

De que são feitas as nossas certezas? O padre rezava forte para suportar. Uma criança loira e suja olhava curiosa a cena. Um vendedor gritava. Cavalos em algazarra, sons de algum instrumento desagradável. Tudo era igual. Tudo era inútil.

E à mente do padre vinha obsessivamente a cena do interrogatório a que estivera presente. Da posição onde se colocara, atrás de um velho reposteiro, mal podia ser visto. Mas ele via tudo. Anna, acorrentada, a chorar, já com algumas marcas e feridas, afirmava inocência diante das acusações. Era em vão. Não era o que o Inquisidor desejava ouvir. Então a torturavam mais. Aconteceu então. Ela percebeu o padre Rodrigo e lançou-lhe um olhar demorado que pedia socorro. Um olhar de súplica, talvez de perdão e de mudo desespero. Talvez mais um ardil, mais um feitiço aquele olhar…

Padre Rodrigo sentiu imensa impotência, imensa mudez, total fraqueza diante de tudo. Sim, desejava salvá-la. Por outro lado temia, temia muito este desejo. O olhar da pobre judia falava de campos abertos, de liberdade, de cheiros, gostos e atos fascinantes que Rodrigo mal poderia adivinhar. Mas de algum modo os sentia. Sortilégio. Perigoso encantamento. Como era possível? Que silenciosa linguagem, sem gramáticas e dicionários, ela estava usando apenas com os olhos? Ou tudo aquilo eram visões doentias na alma do débil padre?

Sim, enquanto sofria as torturas Anna rogava – e falava – com os grandes e chorosos olhos negros. Em silencioso apelo. E era transgressivamente bizarro, havia alguma terrível culpa, algo de sensual e sombrio naquele longo pedido de ajuda. Padre Rodrigo não mais suportou a tensão e saiu quase a correr da escura masmorra. Sentia-se dolorosamente aliviado. Seguro em seus medos e em suas frágeis certezas. Concluiu para si mesmo: mesmo que pudesse não a teria ajudado. A covardia e a fraqueza eram suas pilastras de força.

Agora só havia muita fumaça no centro da fogueira. A judia não gritou. Talvez tivesse desmaiado. A morte a tomou sem muito alarde. O cheiro era detestável e as pessoas já se afastavam e seguiam suas pequenas vidas sem sentido. Mas ainda uma vez o Padre Rodrigo de Góis, herética e inexplicavelmente, procurou os olhos de Anna em meio à fumaça de cor cinza escura. Nada mais havia ali. Aquela jovem tinha mesmo que morrer!

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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