O livro do filho – final

22/03/2025

[…] A sensação de que precisava vivenciar aquela experiência mística novamente levou o velho a inúmeras incursões no interior de si mesmo. Encontrou, dentro de si, as respostas, o consolo de que precisava para, quando chegasse a sua hora, morrer em paz. A ideia de existência post-mortem brotou a esperança de reunir-se à sua mulher e filho no além.

Os dias foram passando. As experiências tornaram-se cada vez menos frequentes à medida que o livro do filho ia sendo preenchido pelas mãos calejadas e espirituais do senhorzinho. Ao que parecia, era como se mulher e filho curassem o velho das dores das irreparáveis perdas. Quanto mais se aproximava da folha final, mas cheio de vida se tornava o ancião.

Seus olhos, que em outrora eram opacos e fitavam constantemente para o nada, agora são brilhantes e miram, esperançosos, para o céu. Reler o livro do filho diariamente, tendo sempre ele e a esposa de volta em sua vida, ainda que de forma insólita, traziam acalanto para o coração solitário do velho.

Eis uma das escritas do filho ao pai:

‘‘Pai, sei bem que têm sido anos difíceis para o senhor. A mamãe, que tanto o amava, e ainda ama, sempre me fala o quão maravilhosa foi a sua passagem pela Terra, graças ao senhor, que sempre esteve ao seu lado em todas as circunstâncias. Também eu, querido pai, não posso me furtar de dizer-lhe que reconheço os sacrifícios que empenhastes para me criar, sobretudo com recursos tão parcos. Lembra-se do carrinho de lata e madeira que o senhor confeccionou para mim? Aquele brinquedo foi o meu preferido, mais dos que os brinquedos de luxo que eu ganhava do filho da vizinha. Apesar da minha rápida trajetória pela Terra, papai, sei eu cumpri os meus desígnios, mas, confesso, se pudesse, pediria a Deus para voltar como seu filho novamente, pois sinto uma falta impreenchível do senhor. Despejo essas palavras no meu livro, papaizinho, por intermédio da sua caridosa mão, para que possas lê-las sempre que puder e, com isso, ficarmos, de alguma forma, mais próximos e conectados. Deus o abençoe, pai! Logo estaremos juntos!’’

Esse ‘‘Logo estaremos juntos’’, ao invés de trazer algum desespero, ao contrário, trouxe-lhe a esperança de que logo os veria no plano superior, no divino. O senil passou a correr os olhos no livro todas as noites e, nos fins de semana, passava o dia quase todo a reler as páginas do livro do filho.

E foi assim até que, em uma santa noite, envolta em uma fina neblina, como que formando um véu, duas figuras adentram ao quarto do filho do velho, que passou a dormir nele todas as noites, e senil. Os espectros, como há de supor o leitor, eram alvos e emanavam luzes igualmente claras. Os rostos, aos poucos, foram se tornando reconhecíveis. Sim, eram eles: mulher e filho. Vieram busca-lo.

Ele olhou para a cama e viu o seu corpo inerte que ali jazia. Um sorriso estampou o rosto do velho que, ao olhar para a sua família, uniu-se a ele e seguiram rumo a uma imensa claridade celeste. E quanto ao livro, ninguém tomou conhecimento do seu paradeiro, o que fez com que a história do velho fosse considerada um mito por uns e um milagre por outros.

 

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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