[…] Recobrado do pranto lavador da alma, pranto que fora acometido mediante as saudosas lembranças de sua amada esposa, o senhor pôs-se, ao olhar para o livro, antes de escrever nele qualquer coisa, a lembrar do filho enquanto um ser vivente independente, isto é, com suas características próprias; com seu temperamento único; com seu jeito de ser inigualável. ‘‘Ninguém, de fato, é igual a ninguém’’, pensou enquanto começou a escrever.
A escrita do velho passeava pelo ano de 1885, mais precisamente em meados do mês de setembro, onde o seu filho, ali, contava com apenas nove meses e um dia de vida. O velho, apesar da dor da perda da esposa, nunca considerou culpabilizar o filho pelo infausto ocorrido. Ao contrário: viu no filho a sua salvação, o seu refúgio para este mundo de agruras diárias.
Aos nove meses, o seu pequeno filho possuía os olhos idênticos aos da mãe. Seus traços oculares eram, de fato, incrivelmente parecidos aos da sua genitora. O pai os admirava por horas, como a ver a sua falecida neles, ou os olhos dela nele. Mas também reconhecia, ali, o seu filho – indivíduo único e igualmente amado.
Neste instante, fantasia e realidade se misturam. Como em transe, o senil passeia pela alma do filho e da esposa numa simbiose impensável. Passado e presente se encontram no mesmo quarto. No presente, o velho, no passado, seus falecidos filho e esposa. O homem podia ver o passado no presente, e escrevia, ainda que entorpecido e inconsciente, tudo o que via, algo similar ao que os médiuns fazem.
Nesta realidade paralela, se assim podemos chamar, via seu filho e sua esposa no passado, mas, estranhamente, não como seres viventes, mas como espíritos. É como se eles voltassem ao passado – os três –, mas, mantendo a realidade do presente, que seja, ele, o pai, como único ser vivo dentre eles.
Ainda era o ano de 1885. Sua esposa estava sentada no batente da casa com seu filho, o pequeno de nove meses, no colo. Estranhamente, tudo que podia ser visto era na cor sépia. Parecia não existir, naquele universo, as doze cores que compõem o círculo cromático clássico. Mas, para o pai-marido, a ‘‘existência-inexistente’’ de sua mulher e filho compensava toda e qualquer ausência de cor.
Ele aproximou-se de sua família, deu um beijo em cada um, mulher e filho, e sorriu. Neste instante, sua visão foi esmaecendo. Sua família lhe pareceu distante e seu olhar foi, aos poucos, morrendo… Até morrer de um todo.
Mas acordou… Do transe, ou seja, lá o que for aquilo… Entretanto, no quarto do seu filho. Estava se sentindo bem, apesar da confusão mental provocada pela experiência que acabara de passar. Ao olhar para o caderno, percebera que, incrivelmente, escrevera nove folhas daquele livro! Resolveu lê-las no mesmo instante. Assim como acontece nos sonhos, ele não se lembrava de quase nada do que escrevera. Na realidade, lembrara-se apenas dos tons marrons e de sua esposa e filho no batente da velha casa… E do beijo que deu em cada um.
‘‘Eu preciso encontra-los novamente’’, pensou o velho, ainda com a pena na mão […]
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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