Até 1910, mesmo depois da abolição da escravidão no Brasil, em 1888, a Marinha brasileira ainda castigava seus marinheiros negros fisicamente, com chibatadas.
Em determinada ocasião, os marinheiros brasileiros foram à Inglaterra para aprender a tripular novos navios que o Brasil havia comprado, os encouraçados, conhecidos como Dragões do Mar. Percebendo que os marinheiros ingleses eram tratados como gente, os militares negros brasileiros, que eram tratados pela sua pátria como bichos, liderados por João Cândido, o Almirante Negro, deram início à revolução que ficou conhecida na história como A Revolta das Chibatas. Eles tomaram os navios, apontaram seus canhões para o Palácio do Catete, hoje Museu da República, no Rio de Janeiro, e exigiram que a chibata fosse considerada crime e que o presidente Hermes da Fonseca, anistiasse os envolvidos na revolta.
O governo se deu por vencido e, a duras penas, cedeu. No entanto, um mês depois acabou por perseguir e prender João Cândido num cubículo, junto de mais 17 marinheiros, numa véspera de Natal. Acontece que essa cela acabara de ser lavada com água e cal, que no calor do Rio de Janeiro, acabou evaporando e matando por sufocamento 16 dos 18 marinheiros que ali estavam (acidente ou crime premeditado?). João Cândico foi um dos dois sobreviventes, no entanto, ao ser solto, nunca conseguiu superar aquele trauma e acabou sendo internado em um hospício. Ao sair, tornou-se pescador, e morreu no ano de 1969, aos 89 anos de idade.
Cinco anos após a morte do Almirante Negro, em 74, Elis Regina gravou uma música em sua homenagem, chamada O Mestre Sala dos Mares.
Aldir Blanc, compositor da letra da canção (a melodia ficou por conta de João Bosco), começa-a, de uma maneira irônica, dizendo “há muito tempo, nas águas da Guanabara, o dragão do mar reapareceu”. Já em outra parte da letra, ele exalta a destreza de João Cândido que, navegando um dragão do mar, “tinha a dignidade de um mestre sala”. Já aqui ele transforma a dor dos marinheiros negros em poesia: “rubras, cascatas jorravam das costas dos Santos entre cantos e chibatas inundando o coração do pessoal do porão que a exemplo do feiticeiro (João Cândido) gritava então”.
No refrão, Aldir usa de uma sagacidade impressionante. Ele traz elementos que, assim como o Almirante Negro, desorientam os navios (tudo o que os almirantes brancos não queriam, assim como a Revolta das Chibatas): “glória aos piratas, sereias, cachaça, baleias (aqui, muito provavelmente, ele se referiu ao livro Moby Dick, do escritor americano Herman Melville, que fala de uma baleia que ataca navios)”.
A conclusão da letra é um soco no estômago. Aldir finaliza dizendo assim: “glória a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais. Salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas no cais”. Ou seja, não há monumento. Não há homenagens ou qualquer tipo de exaltação à memória de alguém que tanto fez pela liberdade de um povo.
Concluo minha coluna de hoje afirmando, tristemente, que o Brasil está se tornando um país sem memória; e um país sem memória é um país que nega o seu passado; e o nosso passado, por tão belo e importante que foi, jamais poderá ser esquecido.
Bom final de semana!
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