O moto-taxista

22/07/2023

Num desses raros eventos em que atendo ao chamado de um amigo para confraternizar com desconhecidos, sucedeu um fato interessante. Estávamos num sítio a poucos quilômetros da cidade.

Durante a manhã houve uma pelada amistosa, isto é, sem conflitos ou lesões. Após o almoço, começamos a beber. Como estávamos só entre homens, falávamos abertamente, sem que houvesse a necessidade de refrear a língua.

A tarde se estendia lentamente e as sombras das árvores davam à conversa um tom suportável e até alegre. Só dei pela hora quando avistei o farol de uma moto que se aproximava de onde estávamos.

Desceu ao nosso encontro um sujeito alto, forte, de uma boa aparência que contratava com a nossa, homens de meia idade cujo corpo já não obedecia aos ditames da moda. Um dos presentes gracejou:

– Chegou o moto-táxi mais solicitado da região!

Não demorou para que eu entendesse que o homem não era bem o que parecia – mas, afinal, quem de nós o é?

Não tirei mais os olhos do homem de colete. Durante algum tempo, ele só participava da conversa acenando a cabeça em concordância. Parecia não ser dado a polêmicas. Fazia o tipo misterioso. Foi quando sua história veio à baila.

Um dos rapazes, já “tocado” pelo álcool, fez comentários indiscretos sobre a fama do “moto-táxi das madames”, alcunha dada ao moço. Houve alvoroço para que ele contasse a história.

De um modo muito tímido, ele contou que a ideia inicial fora de uma amante, uma “senhora muito conhecida” na cidade. Para afastar quaisquer suspeitas, ela atinou para o fato de o casal só possuir um transporte, que sempre ficava com o marido. Coincidiu de ser a época em que o fenômeno dos moto-taxistas se multiplicava nas cidades do interior, etc.

E foi assim, portanto, que ele se tornou um “moto-táxi de fachada”, nos seus dizeres. O caso acabou, mas ele prosseguiu com o disfarce. Dava para levar a vida, concluiu.

Nessa hora não contive minha curiosidade e perguntei-lhe se ele não temia ser descoberto, ainda mais por já ser famoso. Para minha surpresa, ele disse que já tinha pensando em tudo quando começou. Sim, a ideia original fora da amante casada, mas os riscos foram todos calculados por ele e a longo prazo.

Todos nós ficamos entusiasmados crendo que ele revelaria como havia escapado de tanta bala, facada ou coisa que o valha. Mas ele fez um gesto de siri e saiu pela tangente, mesmo sob o protesto de todos nós.

Como insistíamos sem cessar para que ele contasse algo, muito sabiamente o moto-taxista anunciou que faria uma revelação, apenas uma. Disse que jamais havia contado o que estava prestes a nos contar. Mas só contaria sob a condição de nos darmos por satisfeitos.

Concordamos. Ele então revelou que, durante todos esses anos, a única coisa que de fato ele temia era morrer num acidente. Disse que a Perimetral, por exemplo, dava-lhe pesadelos.

Confessou que nunca aprendera a andar bem de moto, que já havia sofrido algumas multas; que já caíra algumas vezes (quedas leves, pois ele andava na velocidade de uma cinquentinha) e que sempre acreditou que morreria de uma forma “boba”.

Houve um breve silêncio. Seguiu-se a isso uma gargalhada geral. “Essa é boa”, alguém disse. Outro completou: ” O cara já saiu com mulher de cabra valente e tem medo de morrer dirigindo a cinquenta quilômetros! Piada”.

Mudamos de assunto. Discretamente, ele saiu sem que sentíssemos sua ausência. Era mesmo um sujeito escorregadio.

Pensei com meus botões já bêbados: Faz sentido, o medo dele. A vida gosta de nos encerrar de formas inimagináveis…

Se bem me lembro, notei nele uma expressão de resignação enquanto falava, um olhar de quem pressente como será o próprio fim.

Nunca mais soube dele. Mas conjeturei, muitos anos depois, qual era o método que ele usava. Eu me convenci de que ele havia contratado, por assim dizer, um amigo da mesma profissão.

Por certo um sujeito insuspeito. Feio, mais feio que o normal. Esse sujeito iria até o endereço, pegaria a madame em questão e a levaria até ele, que faria o resto da viagem. Depois, ele levaria a mulher até o ponto onde seu amigo feio os esperava. E assim, mesmo sabendo dos riscos, o amigo ganharia bem mais dinheiro que numa corrida normal, digamos assim.

Comecei a acompanhar mais as notícias locais, à espera de um acidente envolvendo um moto-taxista jovem e bem apessoado. Depois comecei a suspeitar de que talvez o amigo feio morresse no lugar dele, num acidente, nessas reviravoltas do destino.

Até hoje, que eu lembre, não ocorreu uma coisa nem outra. Mas numa coisa o sujeito estava coberto de razão: a Perimetral é mesmo um pesadelo.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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