O nascimento do terrorismo evangélico – parte I

14/01/2023

Jaquelini de Souza

Doutora em Teologia com ênfase em História do Cristianismo

Parte do país ficou e ainda está chocado com os atos terroristas contra as sedes dos três poderes da República. Digo parte, porque em pesquisa divulgada pela AtlasIntel no dia 10/01/2023 em relação à opinião da população entrevistada sobre o ataque terrorista de Brasília, quando perguntado sobre se concorda ou discorda com a invasão, enquanto todos os demais espectros religiosos são mais de 80% de discordantes, entre os evangélicos são apenas 54%.

Uma outra pergunta questiona se a invasão é ou não justificada ou justificada em parte, quando se soma, justificado e justificado em parte, a soma dos evangélicos chega a 50,5%, sendo o único espectro religioso, cuja maioria vê justificativa ou justificativa parcial do ataque terrorista. Sendo que 18,6% de evangélicos não souberam responder à pergunta e apenas 30,9% consideram totalmente injustificada a invasão. Quando se perguntou se Lula de fato venceu as eleições, 67,9% dos evangélicos responderam não. Segundo esta pesquisa, cerca de 70% dos evangélicos brasileiros são bolsonaristas fiéis. Acreditam em toda narrativa do bolsonarismo, que foi alimentanda e reforçada por grande parte dos pastores. Basta ver inúmeros vídeos veiculados por eles mesmos em suas redes sociais, muitos se identificavam como missionários, pastores, oraram antes da invasão e cantaram um famoso hino da Harpa Cristã após invadirem o Congresso.

Afirmo, categoricamente, que o que vimos em Brasília, além do ataque terrorista da extrema-direita, foi o nascimento do terrorismo evangélico brasileiro. Mas a primeira pergunta a se fazer é como isso aconteceu, como as igrejas evangélicas brasileiras se tornaram verdadeiras incubadoras de militantes da extrema-direita? Talvez a resposta perpasse pelo fato de que, com exceção de luteranos, anglicanos, presbiterianos unidos e uma parcela dos congregacionais, que somados devem representar apenas cerca de 10% dos ditos evangélicos no Brasil, são de fato protestantes. Isso significa que 90% dos evangélicos no Brasil não são protestantes.

O que é ser protestante?

A melhor definição do que é ser protestante advém do teólogo luterano alemão Paul Tillich, que cunhou o conceito de “princípio protestante” em sua clássica obra A Era Protestante. O princípio protestante é a crítica do dogma, protestantes não aceitam que o absoluto, como a doutrina da trindade, seja relativizado. E o relativo, como uma das várias interpretações do livro de Apocalipse, seja absolutizado. Um protestante faz a crítica teológica de sua igreja, comparando-a com que lê na Bíblia, a autoridade máxima, e aceita ou não, de acordo com sua consciência. Isso, inclusive foi a base da liberdade de consciência no nascente Estado Moderno na Europa do séc. XVI.

No Brasil, as igrejas evangélicas são verdadeiras vigilantes de mentes e corpos, em muitas denominações, especialmente as pentecostais, os pastores são vistos como “ungidos do senhor” (expressão usada para Cristo na Bíblia), portanto o que eles falam tem muito poder. Ditar as consciências, como que música você deve ouvir, que roupa você deve usar e até em quem você deve votar, é a atitude mais radicalmente antiprotestante que se pode ter.

Este antiprotestantismo na esmagadora maioria das igrejas evangélicas brasileiras se deve ao fato, com exceção de luteranos, anglicanos e congregacionais, esta tradição cristã veio para o Brasil através das missões estadunidenses na segunda metade do século XIX, não da Europa, o berço do protestantismo. Portanto, não era o protestantismo original, mas transformado pela doutrina do Destino Manifesto dos EUA e outras novas interpretações teológicas inventadas nos EUA, que os distanciava profundamente da teologia dos reformadores do sec. XVI.

O liberalismo econômico

Sobre isto, Emile G. Leonard, um calvinista francês que fora professor de História na USP e é considerado até hoje o maior historiador do protestantismo brasileiro diz: “Do ponto de vista doutrinal, o calvinismo que acreditavam difundir já era uma diluição de diluições anteriores; o presbiterianismo americano já era ‘ele mesmo uma adaptação do presbiterianismo britânico que por sua vez, através de um século de lutas contra o catolicismo e o anglicanismo, se havia distanciado longamente do pensamento de Calvino. E como quase sempre acontece com as Igrejas distantes de sua fonte de inspiração — e por isso mesmo mais ortodoxas em vontade que em espírito, o que era importante pera estes missionários era a adesão aos textos denominacionais sob a forma da tardia e duvidosa Confissão de Fé de Westminster (1647)”. Em O protestantismo brasileiro, estudo de eclesiologia e de história social.

Portanto, nem o dito “protestantismo histórico” no Brasil é protestante, segundo a definição de Tillich, reforçada pela crítica de Leonard. O evangelicalismo que veio para o Brasil já chegou fundamentalista, um movimento que nasceu na Universidade de Princeton para ser reação ao liberalismo teológico alemão. Porém, o movimento passa a se chamar de conversador, quando a série Os fundamentos é publicada entre 1910 e 1915, apresentando o dispensacionalismo teológico como o fundamento teológico na escatologia (doutrina do fim).

Os missionários que aqui chegaram dos EUA acreditavam que Deus escolheu os EUA para levar seu Reino para o mundo, e isso significava a fé evangélica e o liberalismo econômico. Não é à toa que receberam grande apoio financeiro da maçonaria, que via esta religião como mais racional e moderna que o catolicismo. Como mostra a clássica obra do historiador David Gueiros, O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil.

São inúmeras as obras que relatam a importância que o calvinismo teve para a expansão e consolidação do capitalismo, a mais famosa é a Ética protestante o espírito do capitalismo de Max Weber. Peter Laslett, historiador britânico de ideias políticas, afirma em sua introdução ao Segundo Tratado Sobre o Governo de John Locke, que os calvinistas naturalizaram o direito à propriedade e a sociedade de mercado, como sendo a natural da humanidade e aprovada por Deus, muito conveniente a eles, em sua maioria burgueses perseguidos pela igreja católica por conta da cobrança da usura, juros.

Assim o evangelicalismo brasileiro entende que a direita é de Deus, que a direita expressa valores cristãos, e, portanto, seu antagonista, a esquerda só pode ser maligna. Reunida em Supremo Concílio, a Igreja Presbiteriana do Brasil afirma que o marxismo é incompatível com seus símbolos de fé. Talvez fique explicado porque o evangélico bolsonarista é liberal na economia, mesmo sendo ele, em sua esmagadora maioria, pobre, explorado e com direitos trabalhistas diminuídos pelo sistema capitalista.

Conservadorismo

O conservadorismo nos costumes vem do puritanismo exacerbado dos missionários calvinistas, e também no mundo pentecostal, pois esse movimento nasceu das igrejas ditas “históricas” nos EUA, então herdaram delas isso. Como evangelizar um país cristão? Ora mostrando que seu cristianismo é o verdadeiro e que o aqui existe é falso, idolatria papista. Assim a identidade evangélica no Brasil, desde seu nascedouro, formou-se na negação do outro, e não na afirmação de si. Evangélico é o oposto do católico, o que ele faz, o evangélico não faz. Evangélico não bebe, fuma, vai a festas, escuta “música do mundo”, usa roupas sensuais, e só namora evangélico. O “ser diferente do mundo” em grande parte é isso, uma marca distinta visível, que nas últimas décadas se criou até um dialeto próprio: “misericórdia”, “tá amarrado”, “em nome de Jesus”, “varão/varoa”, e por aí vai.

Porte de armas

A questão do porte de armas é uma novidade no mundo evangélico, pois isso nunca foi uma pauta das igrejas. Porém, como o evangelicalismo brasileiro, tanto calvinista quanto pentecostal, tem os EUA como sua referência teológica, o tema acabou entrando no vácuo da expansão dos ideários da extrema-direita trumpista. No ano passado o pastor Renan, da Igreja Agnus de Curitiba, uma igreja pentecostal, ficou famoso na mídia por fazer “unção de armas” na igreja.

Também no ano passado foi noticiado na mídia um outdoor no muro da Igreja Presbiterana do Brasil em Cascavel no Paraná, fazendo propaganda de armas e de Jair Bolsonaro. O próprio ex-ministro da educação, Milton Ribeiro, que é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil em Santos, São Paulo, teve sua arma disparada por acidente em um aeroporto. O também pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil em Recife, Augustus Nicodemus Lopes, afirmou em um evento para lideranças evangélicas: “Eu não ando armado, porque entendo que no Brasil isso é muito complicado, mas se morasse nos EUA já estaria com uma ponto 45 há muito tempo e se entra um cara na minha casa e sinto que minha família está ameaçada é no meio dos olhos.” A fala pode ser vista neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=K1eytxgFHg0.

O patriotismo

Esta questão reflete, de forma até mesmo subconsciente, como a cultura evangélica brasileira vê a cultura americana como superior ou a mais aprovada por Deus, devido ao mito fundador de ser uma sociedade criada “sob a Palavra”, dos pais peregrinos puritanos. A cultura brasileira é vista como anticristã e em alguns casos até mesmo demoníaca, por sua base religiosa ser católica, indígena e de matriz africana. Evangélicos veem o São João como festa idólatra, e o Carnaval como mundanismo da carne, por exemplo. Samba, forró e ritmos brasileiros são vistos como sensuais. Muito embora os pentecostais criaram uma versão evangélica desses ritmos, porém, só muito recentemente, cerca de 20 anos, permitiram seus membros de praticarem esportes, até mesmo o futebol era proibido!

Ficando-se a questionar que tipo de patriota é o evangélico brasileiro, pois tem uma visão muito negativa da cultura brasileira. O patriotismo evangélico brasileiro parece imitar o americano, uma espécie de dominação pela política, um nacionalismo cristão, talvez isso explique a histeria coletiva no plenário da Câmara em 8 de janeiro, onde muitos gritaram “O Brasil é de Jesus” e cantaram o hino 212 da Harpa Cristã, hinário das Assembleias de Deus no Brasil, com o sugestivo nome Os guerreiros se preparam, que diz: “Os guerreiros se preparam para a grande luta/É Jesus, o Capitão, que avante os levará/A milícia dos remidos marcha impoluta/Certa que vitória alcançará/Eu quero estar com Cristo/Onde a luta se travar/No lance imprevisto/Na frente m’encontrar/Até que O possa ver na glória/Se alegrando da vitória/Onde Deus vai me coroar.”

O hino é uma marcha militar, estilo muito característico da hinódia evangélica americana, profundamente marcada pela Guerra Civil (1861-1865). Foi originalmente composto por Charles Austin Miles em 1911, tendo como nome original Dwelling In Beulah Land. Este mesmo hino também foi tocado pela banda dos fuzileiros navais no desfile de 7 de setembro de 2019, o primeiro de Bolsonaro como presidente, um verdadeiro símbolo da chegada evangélica ao poder.

 

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