O nascimento do terrorismo evangélico – parte II

22/01/2023

Jaquelini de Souza
Doutora em Teologia com ênfase em História do Cristianismo

 

A luta do bem contra o mal

Já que o lema do bolsonarismo é “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, e eles se dizem cristãos, o crucifixo arrancado da parede do plenário do Supremo Tribunal Federal, tem grande chances de ter sido vandalizado por um evangélico. A interpretação fundamentalista dos 10 mandamentos, sendo que um deles diz: “não façais imagens de escultura, das coisas do Céu e nem embaixo na Terra, e a elas não se prostreis para adorardes” não vê imagens de Jesus como arte, muito menos como um símbolo pedagógico que ajuda a sensibilizar espiritualmente, mas como ídolo.

O curioso é que esta interpretação está mais próxima do Islamismo, que não representa Alá e do judaísmo, que também não representa Jeová, do que do Cristianismo. Pois em dois mil anos de história cristã, só o anabatismo, o calvinismo e o pentecostalismo são iconoclastas (são contrários a representação artística para fim religioso). Luteranos, Anglicanos, Metodistas, Católicos e as Igrejas Ortodoxas, inclusive a de Jerusalém, fundada por São Thiago, irmão (para protestantes e ortodoxos e primo para os católicos) de Jesus já no ano 33, da ascensão de Cristo, a mais antiga igreja cristã do mundo! Usam artes plásticas em suas igrejas.

O mais curioso ainda é que, especialmente os pentecostais, rejeitam a simbólica cristã, até mesmo a cruz, mas adotam a simbólica judaica: Talit, Kipa, Menorah, Shophar e a bandeira de Israel, esta, bastante presente durante todo o governo Bolsonaro, da posse da ministra Damares às passeatas e motociatas que Bolsonaro organizou durante seu governo. Isto se dá pelo fato que a escatologia predominante no Brasil entre os evangélicos é o dispensacionalismo.

Esta interpretação teológica entende que os eventos do fim do mundo começaram com o retorno dos judeus à sua terra em 1948, a qualquer momento pode acontecer o arrebatamento invisível da igreja. Segue-se aos 7 de anos de tribulação com o governo do Anticristo, que perseguirá os cristãos que se converteram após o arrebatamento. Jesus voltará e reinará mil anos em Israel, depois do reino milenar acontecerá a Batalha do Armagedon entre os seguidos de Cristo e os seguidores do Anticristo. Cristo vencerá, aí virá o Juízo Final e o Reino Eterno de Cristo. Alguns acreditam que os judeus se converterão, por isso quando quem crer nessa teologia vê uma bandeira da Palestina em manifestações de esquerda, veem na verdade, os futuros seguidos do Anticristo. Se Bolsonaro defende Israel, portando ele está do lado de Deus.

Em dois mil anos de Cristianismo só existe um consenso em termos de escatologia: que Jesus voltará, julgará vivos e mortos e que reinará eternamente. Assim diz o Credo dos Apóstolos, os reformadores pouco escreveram sobre escatologia, pois naquele contexto em que estavam inseridos consideravam mais urgente escrever sobre soteriologia (estudo da salvação). A grande novidade protestante sobre este tema foi eliminar a doutrina do purgatório e a intercessão pelos mortos. Até o século XIX os protestantes apenas esperavam a volta de Cristo, sem se preocupar muito com detalhes de como seria esse retorno.

Tudo muda com a sofisticação do dispensacionalismo por John Nelson Darby (1800 –1882), um inglês dissidente do anglicanismo que fundou seu próprio movimento “avivado” em Dublin na Irlanda, os Irmãos de Plymouth. O jornalista escocês Dave MacPherson, escreveu em 1830 para a imprensa local, que uma jovem chamada Margaret Macdonald estava chamando atenção popular por afirmar ter tido uma revelação divina que Jesus buscaria um grupo seleto de cristãos antes do reino do Anticristo. Isto chamou atenção de Darby que acrescentou em sua interpretação à escatologia, segundo Brian Schwertley em A Origem do Ensino de um Arrebatamento Pré-Tribulacional.

A nova doutrina se tornou muito popular no nascente movimento pentecostal americano, e foi levado ao mundo devido a publicação da Bíblia de Referência Scotfield, publicada nos EUA pela primeira vez em 1909. Ela foi uma das bíblias mais vendidas do Brasil nos anos 2000, especialmente no meio pentecostal, devido a efervescência da escatologia na virada do milênio. Cyrus I. Schofield (1843 -1921) foi um promotor de justiça no estado do Kansas, exonerado por transações financeiras questionáveis e preso por falsificação. Depois de sair da cadeia, se converteu e publicou esta Bíblia com suas anotações. Você pode ler sobre isso no site do departamento de justiça do Estado do Kansas, neste link: https://www.justice.gov/usao-ks/history.

Calvinismo, Puritanismo, Teologia da Prosperidade, Confissão Positiva, Teologia do Domínio, Teologia do Coach, mistura tudo e teremos…

Desde o famoso sermão de Jonathan Edwards “Pecadores nas mãos de um Deus irado”, no século XVIII, a teologia calvinista norte-americana sempre gostou de enfatizar a ira de Deus contra o pecado. Porém, na última década cresceu a ideia de que Deus também odeia o pecador, tema de um famoso sermão do pastor batista calvinista Paul Washer. John Piper, também um batista calvinista americano chegou a defender que a pandemia de Covid-19 foi a ira de Deus contra os pecados da humanidade. Também se tornou popular a ideia que Deus ama somente o povo eleito, pois Jesus morreu somente por eles, não por toda humanidade, como defende o pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, Augustus Nicodemus Lopes.

O historiador inglês Christopher Dawson, em A ascensão da Cristandade, afirma que enquanto Lutero se preocupou em como a humanidade é salva, Calvino, um reformador de segunda geração, que escreveu mais ou menos 30 anos após Lutero, quando praticamente toda a teologia protestante já estava formulada, se preocupou sobre quem era salvo. É com lembrar que Calvino não era formado em teologia, mas em direito e sua famosa obra Institutas da Religião Cristã de 1536 é uma tentativa sua, através de estudos autodidatas, de sistematizar toda a teologia cristã. Como pode-se ler nesta breve biografia da Calvin University neste link: https://calvin.edu/about/history/john-calvin.html.  Muito diferente de Lutero, que além de ter sido monge agostiniano, já era doutor em teologia cinco anos antes da publicação das 95 teses de 1517. Dawson também defende que o calvinismo cria uma identidade de “povo especial”, pois são os eleitos de Deus.

Do lado neopentecostal e pentecostal a difusão da teologia da prosperidade, criada na década de 60 pelo americano Kenneth Hagin, e introduzida no Brasil por Edir Macedo, defende a crença que é direito do cristão prosperar na Terra e no Céu. Por isso a prática da confissão positiva é fundamental nesta teologia, ela defenda que a palavra tem poder, e é direito do crente declarar aquilo que ele quer em nome de Jesus.

Também é muito popular no meio pentecostal e neopentecostal a teologia do domínio, que defende a existência de demônios territoriais, e é preciso expulsar esses demônios através de declarar que isto ou aquilo é de Jesus. No fundo esta é a teologia que fundamenta a Marcha para Jesus, por isso muitos evangélicos na invasão de Brasília não paravam de dizer que “O Brasil é de Jesus”, pois na cabeça deles estavam expulsando os demônios do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF e limpando o lugar para o governo do ungido do Senhor, que não é Jesus, mas Bolsonaro.

Associado a isto tudo ainda temos a teologia do coach, que é um aperfeiçoamento da teologia da prosperidade. A pregação perde o foco no arrependimento dos pecados e na prática da piedade, mas em palestras motivacionais de como vencer os problemas da vida através da sabedoria da Bíblia. Talvez o pastor mais famoso do país, nesta linha coach, seja o jovem Deive Leonardo.

Esta teologia influencia grandemente a milionária indústria da música gospel brasileira. Um marco deste tipo de música, que deixa de adorar a Deus para ser motivacional é Restitui de 2003 do grupo Toque no Altar, ela diz: Os planos que foram embora/O sonho que se perdeu/O que era festa e agora?/É luto do que já morreu/Não podes pensar que este é o teu fim/Não é o que Deus planejou/Levante-se do chão, erga um clamor/Restitui/Eu quero de volta o que é meu/Sara-me e põe teu azeite em minha dor/Restitui e leva-me as águas tranquilas/Lava-me e refrigera minh’alma/Restitui/E o tempo que roubado foi/Não poderá se comparar/A tudo aquilo que o Senhor/Tem preparado ao que clamar/Creia porque o poder de um clamor/Pode ressuscitar. Esta música foi e ainda é cantada em cultos pentecostais e neopentecostais do país. Vê-se claramente que Deus é pressionado a abençoar o cristão, ele exige de Deus, não pede. Esta teologia está totalmente coerente com o neoliberalismo e o narcisismo da atualidade, que defende ser você o centro do mundo e que merece tudo de bom e melhor na vida.

Quando se mistura tudo isto, tanto no campo calvinista quanto pentecostal e se canaliza para um projeto de poder político, que viu o bolsonarismo um lugar perfeito para sua expressão, tem-se a porta de entrada para o surgimento do terrorismo evangélico. Toda teologia é reflexo de seu tempo, a forma de vivê-la também. Muitas dessas teologias entraram no Brasil há décadas, e os evangélicos foram muito perseguidos, muitos mortos, como o missionário presbiteriano George Butler no início do século XX em Pernambuco, mas dignamente deram a outra face e não reagiram com violência.

Muitos evangélicos sofriam chacota por serem “esquisitos”, “antissociais”, mas eram elogiados como honestos, pessoas de caráter, confiáveis, cujas escolas eram tidas como as melhores do país. Hoje evangélico virou sinônimo de intolerante, negacionista, ignorante, ladrão e agora de bolsonarista. Se as igrejas evangélicas continuarem canalizando suas teologias para um projeto de poder político bolsonarista, deixarão de serem cristãs e passarão a ser incubadoras de terroristas. Muitos pastores usam de forma leviana a liberdade religiosa e a inviolabilidade do local de culto para espalharem ideologias antidemocráticas e apoio a ataques contra a democracia, desde famosos como Silas Malafaia a desconhecidos como Mauro Sérgio Aiello, da Igreja Presbiteriana do Brasil em Mogi das Cruzes, São Paulo, que falou em um culto que “aqueles vôzinos, vózinhas são chamados de terroristas, mas quem é terrorista é que está no governo que subverteu a ordem” Como você pode ver nesse link: https://youtu.be/14LYe7YJMN8. Ora Lula foi eleito, que ordem foi subvertida?

Toda a estética do ataque mostra o messianismo na figura de Bolsonaro como o “ungido do Senhor”, escolhido de Deus para derrotar os demônios territoriais do país e continuar um governo cristão no Brasil. Uma peça publicitária foi feita, na campanha de 2018, com uma montagem da camisa que Bolsonaro usava quando sofreu a facada. Camisa verde e amarela com a frase “Meu partido é o Brasil”, ensanguentada, o slogan das redes sociais que compartilhavam a imagem era “Ele sangrou por você.” Em uma nítida referência a Jesus, como Bolsonaro sendo um novo cristo. O ataque terrorista tinha como objetivo o retorno de Bolsonaro ao poder e ao Brasil, e este novo messias estava nos EUA, a nação que foi construída “sob a Palavra”, como creem muitos evangélicos.

Infelizmente muitos evangélicos no Brasil hoje esperam um messias, cujo nome também começa com J, mas não é Jesus. Este messias não retornou e não retornará para implantar seu reino de mentiras e ódio. Porém, há vozes dissonantes, termino este artigo com esta afirmação forte do pastor Nilson Gomes da Assembleia de Deus, perseguido e ameaçado por criticar o apoio de sua igreja a Bolsonaro, falou corajosamente: “O apoio do movimento evangélico a Bolsonaro é blasfêmia.”

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