A poucos dias do 7 de setembro que assinala o Bicentenário da Independência, e mais uma vez descoberto em práticas em nada republicanas (transações imobiliárias que envolvem a compra de 107 imóveis, 51 dos quais pagos em dinheiro vivo) o presidente Jair Bolsonaro dá andamento a uma programação festiva cujo maior objetivo é mesmo vincular a sua imagem a de um líder heroico e destemido que defenderá o país da ameaça comunista que somente a sua mente estreita e vazia é capaz de enxergar. E, claro, o contingente de fanáticos, a exemplo de certos empresários, que sonham com a possibilidade de um golpe e a volta dos militares ao poder.
O mais preocupante, no entanto, é que o país assiste impotente ao sequestro dos símbolos nacionais e à propagação de um discurso ufanista e patriótico que se contrapõe aos verdadeiros anseios populares. Na lógica fascistoide do presidente e de setores das Forças Armadas, com destaque para o golpismo irrequieto do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, busca-se a todo custo à consolidação do projeto imaginário em que a semiótica das cores, do brasão, da bandeira e do hino, no oportunismo da data festiva, parece criar uma irrealidade na qual um contingente significativo de pessoas acredita como algo palpável – e, a concluir pelo que se vê e ouve nas redes sociais, pela qual está disposta a matar ou morrer, como numa reverberação inconsciente do grito que a história oficial registra como marco da Independência do Brasil.
Feitos esses comentários, dedico-me ao objetivo desta coluna.
Chega às livrarias da cidade (não sem significativo atraso), o oportuno e valiosíssimo “O Sequestro da Independência – Uma história da construção do mito do Sete de Setembro”, assinado por Carlos Lima Jr., Lilia M. Schwarcz e Lúcia K. Stumpf, em edição extremamente bem cuidada da Companhia Das Letras. Li-o em poucas sentadas, pois que se trata de uma leitura prazerosa, levíssima, em que pese a natureza do tema abordado. É que o livro se propõe, exitosamente, sem incorrer nos procedimentos tradicionais da narrativa historiográfica, enfocar os meios sub-reptícios com os quais se ergueu entre nós a ilusória imagem de um país guiado por homens viris e idealistas, fortemente movidos por um sentimento de amor à pátria e leais aos interesses do povo. Explico.
Transitando levemente pelo território da semiologia, numa perspectiva menos teórica e mais voltada para o grande público, sem jamais descer a uma abordagem elementar do ponto de vista acadêmico, o livro traz um farto material visual que não lhe serve apenas de ilustração, a exemplo do que é comum em publicações do gênero. Aqui as imagens, em sua maioria obras de arte destinadas a compor o acervo iconográfico que serve de amparo às narrativas históricas (ou exploradas com essa intenção), são examinadas enquanto textos produtores de sentidos ideológicos previamente pensados (ou não) e que contribuem para uma interpretação positiva de acontecimentos reais ou forjados com a intenção de construir o imaginário popular em termos de pertencimento, nacionalidade e sentimento pátrio.
Nessa perspectiva teórica, pois, é que os autores do livro elegem como ponto de partida e objeto central das análises, a famigerada tela de Pedro Américo sobre “O Grito do Ipiranga”, a partir da qual conduzem a reflexão crítica que serve de esteio a seu belíssimo trabalho. Não é precipitado dizer, assim, que o livro dialoga com o que se define como ‘tradução intersemiótica’, na linha do que é possível examinar a partir das contribuições de estudiosos importantes, como Walter Benjamin, Ezra Pound, Roman Jakobson, Umberto Eco e Haroldo de Campos.
No caso, a direção escolhida é outra, isto é, a interpretação do texto se dá do signo visual para o verbal, da linguagem estética para a linguagem referencial. Há nisso, em alguma medida, um pouco de Charles Sanders Peirce, de Roland Barthes e, mesmo, de George Didi-Huberman, Emmanuel Alloa e Jacques Rancière. Para o leitor, no entanto, desconhecer essa fundamentação teórica em nada reduz a perfeita compreensão do que é essencial ao livro: a interpretação da imagem a partir do interdito, do que, fugindo ao olhar desatento, constitui a força de sentido, a mensagem muitas vezes desvelada e carregada de motivações de cunho político-ideológico.
Benjamin já nos advertia de que a obra de arte deve ser compreendida em três momentos de sua evolução: a elaboração técnica, a elaboração das formas de tradição e a elaboração das formas de recepção. Mas é Marx, no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, quem melhor se presta ao que quero dizer aqui: “Os homens fazem a própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
Por último, desculpando-me pela extensão do fragmento destacado, dou voz aos autores deste impagável “O Sequestro da Independência” a fim de ressaltar sua importância a poucos dias do Bicentenário: “… o que Bolsonaro faz de melhor é usar efemérides para travar guerras ideológicas. Isso porque até meados de 2022, além de não anunciar nada de efetivo – apenas surfou na onda de edifícios já iniciados e fez muito discurso na base do ódio e da polarização da população. Como o tom da celebração é dado apenas pela exaltação do patriotismo vazio, também tem se buscado repetir a celebração de 1972, quando, em tempos de ditadura militar, entrou no Brasil o corpo de Pedro I. Passados cinquenta anos, pretende-se agora “emprestar” o coração do primeiro imperador do Brasil, o qual, em testamento, demandou que esse órgão de seu corpo ficasse depositado na cidade do Porto”.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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