O último olhar

24/04/2020

A alma, se quer conhecer a si mesma, deve olhar para a outra alma.(Platão, Alcibíades)

Na sua edição de hoje, 23 de abril, o jornal Folha de S. Paulo traz em uma de suas seções o depoimento de quatro profissionais de saúde de diferentes países sobre como enfrentam o cotidiano hospitalar durante a pandemia da Covid-19. Li-os, e recomendo, pelo que trazem de revelador sobre uma experiência que deveria ser conhecida de todos antes de emitir opinião sobre o fim do isolamento social recomendado pela OMS.

Os quatro depoimentos são pontuados por um forte senso de humanidade, e quando falo “humanidade” não estou apenas me referindo ao espírito altruísta e solidário por que se orientam esses profissionais no dia a dia de suas carreiras, a exemplo do que ocorre num momento tão dramático quanto este que estamos enfrentando. Refiro-me ao fato de que esses depoimentos expõem a realidade humana de médicos, enfermeiros e demais profissionais que fazem o cotidiano dos hospitais, trazendo-os ao nível da realidade de cada um de nós.

Ayesha Sunavala, médica indiana, revela a sua angústia e os pensamentos de morte que povoam sua mente, o medo de contaminar seus parentes e de perdê-los, a frustração de não poder examinar os pacientes como devia, a dificuldade de comunicar-se com eles em trajes de proteção, com óculos embaçados e máscaras que não lhe permitem se fazer ouvir. Assume-se humana, honestamente humana: “Por temperamento, não sou corajosa nem aventureira. Estou constantemente preocupada e imensa aversão ao risco”.

Stenio Cavallos, médico equatoriano, diz-se deprimido, depois de ver corpos serem amontoados em frente ao hospital em que atua como chefe de UTI. Salienta que os índices de mortalidade entre os pacientes intubados são assustadores, algo em torno dos 80%. E lamenta ter sido levado a acompanhar a agonia da sogra: “Minha segunda mãe. Ela faleceu. Saiu uma vez só para ir ao mercado. E nunca tossiu, tinha febre, mal-estar, achamos que fosse dengue. Ficou grave, foi intubada e em cinco dias morreu. Sou o chefe da UTI e não pude fazer nada. Isso foi muito forte para mim”.

Precious Chikura, médico sul-africano, evidencia que vive em um país em que se misturam primeiro e terceiro mundos, o que torna as decisões políticas extremamente complexas, mas aplaude o isolamento imposto pelo governo, referindo-se ao baixo nível de contaminação e mortes. Dedicado a intubar pacientes graves, com cujas secreções lida muitas vezes ao dia, arremata: “Se eu for contaminado, estarei no grupo dos que morrem ou dos que sobrevivem?”.

Dos quatro depoimentos, porém, impressionou-me particularmente o do médico italiano Aurelio Filippini, pelo que traz de imponderável, como a reeditar o Platão da epígrafe desta coluna: “É muita responsabilidade ser a última pessoa que alguém vê antes de morrer. Naquela hora, você vira marido, mulher, filho, neto, todos que o paciente não consegue ver nem se despedir. Isso é muito forte emocionalmente”. E desfecha com a forte reflexão: “Os olhares fazem a diferença. E isso me afetou. Nós, com as máscaras, eles, com máscaras ou capacetes, isso permite que a pouca comunicação seja feita com os olhos. Ver alguns daqueles olhares foi muito doloroso”.

Objeto de estudo desde a Antiguidade, examinado em trabalhos acadêmicos notáveis, deslindado à minúcia em ensaios incontornáveis de Walter Benjamin, Susan Sontag, Giorgio Agamben, recorrente na pintura de Da Vinci e nos primeiríssimos planos de Ingmar Bergman, o olhar continua a suscitar indagações. Para além do simples espelhamento, da dobra, do movimento para o abismo, o entrecruzar de olhares muito mais que pede de nós o conhecer-se a si mesmo.

O que diz esse último olhar a que se refere Filippini? Que sentimento ou desespero, que saudade insuportável explode da ausência de brilho desse olhar? Que dor (incomunicável) comunica?

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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