E até o mundo que me era alheio / de mim se aproximou, familiar, / e se deu a conhecer, pouco a pouco, / a mim se impondo, necessário, brutal.
Quando foi assassinado, em 1975, em circunstâncias nunca esclarecidas (era homossexual e estava acompanhado por um rapaz de programa), tinha pouco mais de cinquenta anos, mas seu nome, para o bem ou para o mal, ocupava uma posição que jamais seria preenchida por qualquer outro intelectual italiano. Nem mesmo escritores de prestígio, a exemplo de Italo Calvino ou Alberto Moravia, foram capazes de representar o que ele representou em diferentes campos.
Poeta, ensaísta, pensador, romancista e cineasta, Pier Paolo Pasolini faria cem anos este mês. Sua obra, no entanto, continua a suscitar julgamentos os mais desencontrados, da direita fascista que combateu corajosamente à esquerda marxista radical, que nunca fez concessão ao estilo desabrido e destemido do intelectual polêmico que foi, invariavelmente. O certo é que sua obra permanece inquietando, e o seu pensamento, vivo e atual, como que articulado em função dos desafios de agora – e não os de quase cinquenta anos atrás.
Primogênito de uma professora primária e de um militar de carreira, Pasolini nasceu a 5 de março de 1922, na cidade italiana de Bolonha, tendo sido educado sob o nacionalismo doentio que resultaria no fascismo desenfreado dos anos 1940-45.
Como poeta, produziu uma obra marcada por forte sentimento íntimo, formalmente inovadora, em que sobressaem o tom discursivo e o apelo ideológico incontido que advém de uma profunda compreensão da realidade política e social do país e do mundo. Sustentando-se a meio caminho entre a prosa e a poesia, nunca abriu mão de versejar em caráter experimental, intencionalmente licencioso na construção do que definia como “hendecassílabo hipotético”, verso de onze sílabas métricas que se dilata e se contrai a fim de estabelecer um ritmo poético irregular e transgressor no que tange à sonoridade.
Como romancista, embora menos conhecido para além das fronteiras italianas, escreveu livros notáveis: Meninos de Rua (1955) e Vida Violenta (1959) revelam o olhar atento do militante de esquerda, em que pese ‘aveludados’ pelo sentimento cristão que desponta aqui e além, fruto de sua formação religiosa assumida.
Como ensaísta, levantou teses inquietantes acerca do neocapitalismo e do consumismo contumaz, de que resultaria a perda da identidade e a ruptura dos valores culturais de classe que levam o indivíduo a se deixar dominar bovarianamente.
Mas é o cineasta que sobressai, misto de realizador cinematográfico e poeta, detentor de fina sensibilidade no plano do conteúdo e da expressão estética.
De Accattone (1961), a Salò, 120 Dias de Sodoma (1975), Pasolini soube como poucos realizadores tecer urdiduras dramáticas densas, sobremodo as inspiradas em clássicos da literatura e do teatro, a exemplo do que fez, irretocavelmente bem, a partir de textos clássicos como Decameron (1971), plasmado em livro homônimo de Giovanni Boccaccio, Édipo Rei (1967), de Sófocles, e Medéia (1969), de Eurípedes.
Artista na mais precisa acepção da palavra, Pier Paolo Pasolini faria agora cem anos. Mas, atemporal, sua arte mantém o vigor, a exatidão, o sabor, a poesia, a eternidade…
Obra de um gênio.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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