Os juros, de novo!

01/07/2023

Richard Feynman, um renomado físico ganhador do Prêmio Nobel e considerado um dos maiores professores de todos os tempos, tinha interesses além da física e também era percussionista. Durante sua visita ao Brasil nos anos 1950, onde lecionava para um grupo seleto de alunos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Feynman costumava participar dos ensaios da bateria de uma escola de samba. Seu estilo peculiar de tocar muitas vezes desafiava o ritmo, levando o diretor da bateria a interromper e exclamar: “O americano, de novo!”. Assim como essa exclamação se tornou característica dos ensaios com Feynman, hoje eu a utilizo para expressar minha preocupação com os juros, que mais uma vez ameaçam o desenvolvimento econômico.

Apesar de ser um assunto árido, é de extrema importância compreendê-lo. Vou tentar apresentá-lo de forma mais clara e direta possível. Desde o início de 2021, o Banco Central tem aumentado a taxa básica de juros, elevando-a de 2,75% para os atuais 13,75%. Esse aumento representa uma diferença de 11 pontos percentuais.

Outro ponto relevante é a dívida pública interna, conhecida como Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi). Em setembro de 2022, essa dívida alcançava cerca de R$ 5,5 trilhões, equivalente a aproximadamente 75% do Produto Interno Bruto (PIB). É importante ressaltar que esse valor representa a dívida bruta, ou seja, sem considerar as reservas internacionais detidas pelo Banco Central. Ao levar em conta essas reservas, a dívida líquida fica em torno de 50% do PIB. No entanto, os analistas se preocupam principalmente com a dívida bruta e sua sustentabilidade. É curioso observar que, embora seja necessário considerar o valor em caixa para avaliar a sustentabilidade do endividamento, alguns proponentes do chamado “abismo fiscal” passaram a utilizar a dívida bruta como referência, mesmo que não haja uma definição clara sobre a sustentabilidade da dívida interna de um país com moeda fiduciária.

Enquanto os recursos autorizados pela PEC (Proposta de Emenda Constitucional) são direcionados principalmente para os mais pobres, incluindo transferências sociais, investimentos em saúde, educação e saneamento, os juros da dívida beneficiam principalmente o setor financeiro. Vale ressaltar que há países com dívidas muito maiores do que o próprio PIB, e mesmo assim essas dívidas não são consideradas insustentáveis. No entanto, o objetivo deste artigo não é discutir a sustentabilidade da dívida em todas as suas dimensões, mas sim abordar de forma simples e direta a questão dos juros.

Neste contexto, é crucial refletir sobre o impacto dos altos juros no desenvolvimento econômico. Enquanto diversos países ao redor do mundo possuem taxas básicas de juros reais negativas, o Brasil oferece aos investidores uma taxa real de aproximadamente 8% ao ano, o que pode parecer atraente, mas representa um obstáculo para os investimentos produtivos necessários para impulsionar o crescimento econômico e promover uma transição sustentável para uma economia descarbonizada.

Desde que o Banco Central começou a aumentar a taxa básica de juros, o custo médio de emissão da dívida pública, de acordo com o Relatório Anual da Dívida Pública do Tesouro Nacional, subiu de uma mínima histórica de 4,44% no final de 2020 para 8,49% em 2021. Ainda não temos os dados publicados para 2022, mas é certo que, devido ao contínuo aumento da taxa básica, o custo deve ter sido ainda mais alto. Conforme mencionado no relatório do Tesouro, “os indicadores do custo médio da dívida acompanham o movimento da taxa básica Selic e seus impactos na curva de juros doméstica”. Vamos parar aqui por um momento. O Banco Central determina a taxa básica Selic, que, como reconhecido pelo relatório do Tesouro, influencia – ou melhor, determina – toda a estrutura da curva de juros e o custo da dívida. Quanto a dívida custou nos últimos anos?

Os juros pagos aos detentores da dívida fizeram com que o custo médio da dívida para o Tesouro subisse de 7,15% em 2020 para 8,9% em 2021 e agora está em 10,8% em 2022. O custo médio acompanha de perto o custo de emissão ou rolagem da dívida, pois cerca de 40% da dívida está indexada à taxa básica e o prazo médio da dívida é relativamente curto, apenas quatro anos. Mas, como prometido, vamos evitar entrar em tecnicidades. O fato é que o aumento da taxa básica pelo Banco Central nos últimos três anos custou ao Tesouro 1,75% do PIB em 2021 (8,9% – 7,15%) e 3,65% do PIB em 2022 (10,8% – 7,15%).

A “PEC da Transição”, que autorizou gastos acima do limite estabelecido, no valor de até R$ 169 bilhões, foi chamada de “PEC da gastança” pela “Folha de S. Paulo” e de “PEC do estouro” pela CNN. Essa PEC representa aproximadamente 2,2% do PIB, um valor um pouco maior do que o custo adicional da dívida devido ao aumento da taxa básica pelo Banco Central em 2021, e bem menor do que o custo adicional da dívida pelo mesmo motivo em 2022. Sem entrar no mérito dos gastos autorizados, é importante lembrar que grande parte deles destina-se a garantir o valor das transferências no valor de R$ 600 e o auxílio de R$ 150 para famílias com crianças de até seis anos de idade, um programa assistencialista que tem praticamente apoio unânime no país.

A inflação atual é resultado da desorganização da produção durante a pandemia e do aumento dos preços de energia.

O aumento dos gastos públicos pode de fato causar inflação. Quando a economia está próxima do pleno emprego, os gastos públicos representam demanda por bens e serviços, o que pode pressionar a capacidade produtiva, gerar déficits nas contas externas e elevar a inflação. Esse tipo de inflação é chamado de inflação de demanda. No entanto, é importante ressaltar que a inflação não é um fenômeno único.

A inflação atual, tanto no Brasil quanto em outros lugares, não é causada por demanda. Ela é resultado da desorganização na produção durante a pandemia e do aumento nos preços de energia devido ao conflito na Ucrânia. Por esse motivo, a inflação no Brasil diminuiu com a redução dos impostos sobre os derivados de petróleo e não devido ao aumento nas taxas básicas de juros. Essa afirmação pode ser contestada, pois não há como comprovar uma relação de causalidade, mas o Banco Central começou a elevar os juros há dois anos e a inflação só mostrou sinais de desaceleração com a desoneração fiscal em 2022.

Conforme observado em um artigo da revista conservadora “The Economist” em outubro de 2022, o grupo de países que mais agressivamente elevou as taxas de juros após a pandemia – Brasil, Chile, Hungria, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Peru e Polônia – enfrentaram um abrandamento econômico em relação aos demais países. No entanto, a inflação média continuou persistentemente alta, aumentando 3,5 pontos percentuais desde março de 2022. Contrariando o que se poderia esperar, a diferença entre a inflação dos países do grupo mencionado e dos demais países parece ter aumentado, e não diminuído.

Atualmente, o Brasil possui a taxa básica de juros real mais alta do mundo. Com a taxa Selic em 13,75% e uma inflação anual de 5,9%, a taxa básica de juros real chega a quase 7,5%. Essa taxa não apenas é a mais alta do mundo, mas também mais que o dobro da taxa do segundo colocado nessa triste competição, o Chile. Para efeitos de comparação, a taxa de inflação nos Estados Unidos está acima de 9% ao ano, mas a taxa básica de juros está apenas se aproximando de 4% ao ano. Portanto, a taxa real ainda é bastante negativa.

O mesmo ocorre na Europa, Reino Unido e Japão, onde todas possuem taxas básicas de juros reais negativas. Atualmente, apenas o Brasil oferece aos investidores uma taxa real de quase 8% ao ano, sem risco e com liquidez imediata. De fato, sem risco, pois a dívida pública de um país com moeda fiduciária e um Estado institucionalizado não apresenta risco de crédito. Pode haver risco político, mas não risco de crédito

O aumento dos gastos públicos pode de fato causar inflação. Quando a economia está próxima do pleno emprego, os gastos públicos representam demanda por bens e serviços, o que pode pressionar a capacidade produtiva, gerar déficits nas contas externas e elevar a inflação. Esse tipo de inflação é chamado de inflação de demanda. No entanto, é importante ressaltar que a inflação não é um fenômeno único.

Conforme reconhecido há alguns meses por um renomado gestor de ativos financeiros, que foi sócio do ex-ministro Paulo Guedes por muitos anos, não há investimento real que justifique um retorno real tão elevado. Em um mundo onde é praticamente impossível obter retornos positivos sem alto risco, essa taxa é excessiva e inviabiliza os investimentos. Sem investimentos reais, ou seja, sem expansão da produtividade e da capacidade produtiva, não há uma retomada de crescimento sustentável e não é possível fazer a transição para uma economia produtiva e descarbonizada.

As despesas públicas, tanto as primárias quanto as relacionadas ao serviço da dívida, aumentam a demanda agregada e podem contribuir para pressionar a inflação. É compreensível que ambos os tipos de gastos sejam motivo de crítica, mas é ilógico protestar contra os gastos autorizados pela PEC e, ao mesmo tempo, defender a manutenção das taxas de juros absurdamente altas definidas pelo Banco Central. É uma questão de duplo padrão. O gasto primário, destinado a atender as necessidades básicas da população carente, seria considerado inflacionário, enquanto os gastos com o serviço da dívida, favorecendo os rentistas, não seriam. Seria importante ouvir a justificativa dos economistas autodenominados liberais, assim como de seus porta-vozes que se destacam na mídia, para essa distinção. Enquanto isso, só nos resta exclamar, como disse o diretor da bateria do Feynman: “os juros, novamente!”

 

* Pablo Bandeira é Economista, Mestre em Economia, ex-Secretário do Desenvolvimento Econômico de Iguatu e atualmente, é professor e Analista de Políticas Públicas

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