‘‘Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje;
ou as agonias que têm suas origens em êxtases
que poderiam ter sido.’’
Edgar Allan Poe
O rádio ligado anunciava as últimas do mundo policial: dois mortos e um ferido em uma troca de tiro entre vizinhos naquela noite. ”Valei-me, meu São Jorge”, dizia uma velhinha. Dai em diante, começariam uma conversa sobre a proximidade do fim do mundo. Que tais acontecimentos sangrentos prenunciavam a vinda do Salvador. Essas coisas.
Sei bem o valor e a razão de ser de uma religião; minha quase descrença não me deixou cego de um todo, mas há muito me esquivo dos assuntos metafísicos, teológicos, espiritualistas ou qualquer coisa que se assemelhe. Dentro de mim, todo um hades e paraíso jazem na mesma tímida chama que um dia fora fogaréu. A vida futura, se vir, já não me interessa tanto assim. ”Tenho pressa de viver”, como diria Belchior. Anseio pelo imediatismo, não conjecturas das quais sempre, pela minha natureza, desconfio.
Entro no meu quarto, pego um cigarro, acendo e, olhando para a fumaça, penso sobre as desgraças que cada um carrega dentro de si. Dos segredos inconfessáveis, das alegrias poucas vezes revividas, dos outros que não veem o mundo como eu, e que por isso são mais felizes, e outros, mais infelizes ainda… Pareidolia! A fumaça do fumo toma uma forma mal desenhada de um rosto feminino.. ou de um demônio… Nunca sei a diferença. Talvez o meu subconsciente quisesse, sempre impertinente, vê-la nos lugares mais insólitos.
Volto à sala e os velhinhos continuam com seus assuntos sobre desgraça, doença, miséria. Parecem alimentar, com gozo, o monotemático teor: calamidade. Como se já não bastasse o inferno em que todos, enquanto almas sofríveis, já carregamos introspectivamente. Tudo o que não é externo, lhes é estranho e alheio. Incautos desavisados. Sexagenários desperdiçando os últimos segundos em tão somente agourar as parcas vidas que lhes restam.
Retorno ao quarto, acendo mais um cigarro que me levará, quem sabe, mais cedo do que os agourentos velhinhos, e leio Allan Poe. Se for pra ”falar” de morte, que seja com classe e com um mestre.
E o coração se apraz, e a fumaça volta a parecer o que é, e a paz reina, ainda que paliativamente.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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