Dra. Jaquelini de Souza
Professora de História Econômica da URCA
Há cem anos, a Europa via horrorizada um ditador marchar sobre Roma depor o rei Vitor Emanuel III. Mussolini foi uma consequência dos resultados geopolíticos da Primeira Guerra Mundial, e inclusive estamos vivendo tempos muito próximos ao primeiro conflito global. Não no sentido de uma guerra de impérios, como caracterizou Eric Hobsbawn, mas no sentido de contexto pandêmico, líderes fracos e crise do capitalismo, e é neste último ponto que quero me concentrar, e dialogar com o leitor, neste texto.
Diferente de Mussolini e Nicolau II, o último czar russo, Putin não é um homem fraco, ele pertenceu à antiga KGB, acredita em uma ideologia política que defende a reconstrução da “Grande Mãe Rússia”, passou os últimos 20 anos diminuindo a dependência russa a bancos ocidentais, pagando suas dívidas e modernizando a infraestrutura industrial e militar do país. Enquanto isso, o Ocidente enfraquecia seus estados, ao aderirem ao neoliberalismo que defende, não apenas a não intervenção do estado na economia, mas que o Estado seja mínimo.
Quando o mundo entrou em guerra global pela primeira vez, o capitalismo liberal estava em crise, a Revolução Industrial mudou drasticamente a vida das pessoas na Europa. Capitalistas enriqueciam, pela primeira vez pressionavam reis e imperadores, com seu poder econômico, e o povo lutava para sobreviver em precárias condições de trabalho. O Império Russo chegou ao fim em 1917, com a revolução bolchevique.
Após a Guerra, os EUA se tornaram o maior credor mundial, mas a crise de superprodução, a de 1929, adiou a liderança global americana. Quando a crise aconteceu, o governo de Herbert Hoover era resistente em agir para acudir a população, pois a crença da autorregulação dos mercados era como um dogma religioso. O país mergulhou em sua grande depressão econômica, que só sairia com o New Deal e a intervenção do Estado na economia durante o governo do presidente Roosevelt. O Ocidente aprendeu que um Estado forte pode existir com democracias fortes.
Do pós-Guerra (1945) até a crise do petróleo (1973), o capitalismo ocidental viu sua era de ouro, o que David Harvey chamou de keynesianismo-fordista, ou seja, um Estado interventor na economia para patrocinar a iniciativa privada e fortalecer seus estados. Durante esse tempo, EUA e URSS, disputaram guerras indiretas: Coreia, Vietnã e Afeganistão foram as principais.
Depois da crise do Petróleo de 1973, o modelo keynesiano-fordista foi duramente atacado pelos especuladores de Wall Street, que conseguiram eleger Ronald Reagan, que desregulamentou o sistema financeiro americano, e a era de intervenção do Estado na economia chegou ao fim nos EUA. Ao mesmo tempo a URSS começa a entrar em colapso por suas próprias contradições internas. Cai o muro de Berlin, a URSS é dissolvida e parecia a vitória do capitalismo financeiro neoliberal. Tanto que Francis Fukuyama chegou a afirmar o fim da História, pois o capitalismo e o livre-mercado desregulado controlariam a história, a partir de agora.
Nos anos 90, parecia mesmo que o capitalismo financeiro vencera. Até a dita nova esquerda, representada no mundo por Tony Blair e Bill Clinton se renderam ao neoliberalismo. Na Rússia, o presidente pró-ocidente, Boris Yeltsin, era um bonachão, que não conseguiu transformar o país em um paraíso capitalista, como fora prometido. Neste vácuo surgiu Vladimir Putin, ex-agente da KGB, que fundou um partido o “Rússia Unida”, que tem como objetivos retornar a Rússia o status de potência mundial, que não aceita estar no segundo plano das decisões mundiais. Enquanto o ocidente enfraquecia seus estados, e se desindustrializava para favorecer o mercado financeiro, achando que um mercado livre e desregulado acabaria todas as guerras pela fraternidade do capital. Putin fortalecia a infraestrutura do país, industrializava a Rússia, e transformava suas forças armadas na mais poderosa e moderna da Europa.
A Rússia não tem tradição democrática e gosta de líderes fortes, Nicolau II, seu último czar, era considerado um homem fraco, Gorbachev e Yeltsin também. Putin alimenta o imaginário do grande estadista em grande parte do povo russo, que não se importa muito se o país é uma ditadura ou democracia, desde que o país esteja bem e seja comandado por um estadista forte. E Putin ainda carrega a velha disciplina soviética na forma de pensar e agir.
Putin conseguiu convencer uma parte da população russa, que o apoia, que o ocidente foi injusto com a Rússia, a verdadeira vencedora da Segunda Guerra Mundial, na visão dele. E que é direito histórico da Rússia reconstruir seu país, ou seja, o antigo território do Império Russo. Isso significa tomar não apenas a Ucrânia, mas também Belarus, Geórgia, Moldávia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão, Uzbequistão, Estônia, Letônia, Lituânia e partes da Polônia.
Sanções econômicas não adiantam muita coisa, pois a economia russa já é bastante fechada e só a aproxima mais da China. Esta dará apoio total à Rússia e tem interesses de invadir Taiwan. A união do maior país do mundo, a Rússia são três brasis, com o mais populoso, China, é colocar o ocidente em xeque.
E o Ocidente está enfraquecido devido ao neoliberalismo, estados fracos, líderes fracos, esquerda e direita debatendo pauta de costumes ao invés de economia política e Wall Street lucrando. O capitalismo financeiro não tem honra, ética e não responde a ninguém, lucraram como nunca em plena pandemia, e agora lucrando com o sobe e desce de ações na especulação de uma guerra.
Os engravatados que brincam com o futuro das pessoas, sentados atrás de computadores, estudando gráficos, não sabem o que é a vida real, eles não olham no olho das pessoas, não entendem que cultura, história, identidade nacional, que Putin tanto preza, não podem ser comprados.
O que estamos vendo é uma nova ordem mundial, o neoliberalismo ocidental versus o hard power russo-chinês. Se não abandonarmos esse modelo econômico, que enfraquece os estados e deixa governos à mercê de corporações financeiras, que não são fiéis a ninguém além de si mesmos, estaremos de joelhos esperando o golpe fatal sino-russo.
Enquanto os mauricinhos de Wall Street brincam de banco imobiliário com a geopolítica global e a OTAN trata o mundo como um tabuleiro de War, Putin joga xadrez brilhantemente como aquele soviético que venceu o computador nos anos 70. Guerra é uma tragédia, só quem perde é o povo ucraniano, e como disse Ulisses a Aquiles, quando Agamenon se gabava da vitória de seus soldados sobre Príamo, rei de Troia, sem ele próprio pegar em uma única espada: “A guerra é o velho falando e jovem morrendo.”
Iguatu, Ceará, neste histórico 24 de fevereiro de 2022.
0 comentários