Marcelo Ximenes Teles da Roza (Mestre em Economia Rural, professor da URCA e da FASC)
Há alguns dias aconteceu em Iguatu-CE mais uma tragédia social, daquelas que causam perplexidade e nos fazem refletir como seres humanos. Um bebê, venezuelano, de 10 meses de vida, morreu desnutrido no Hospital Regional. A história acontece dentro de mais duas tragédias: a busca pela sobrevivência dos venezuelanos e a pandemia do Covid-19. A explicação mais cômoda para esse triste acontecimento é colocar a culpa no colapso econômico na Venezuela e no drama da população refugiada deste país em busca da sobrevivência mundo a fora. Porém, basta um olhar mais apurado para perceber que o problema vai muito mais além do que um caso particular e isolado, provocando uma reflexão sobre a segurança alimentar e os impactos da pandemia no mapa da fome do planeta.
A insegurança alimentar no mundo sempre foi uma preocupação, no entanto os efeitos econômicos da pandemia podem agravar a crise de insegurança alimentar, configurando-se em duro golpe no desafio de acabar com a fome mundial. Isso fica bem explicito no relatório “O Estado da segurança alimentar e nutrição no mundo 2020”, publicado em julho de 2020, pela ONU através da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
O relatório afirma que o número de pessoas afetadas pela fome em todo o mundo tem aumentado lentamente desde 2014, e que em 2019, aproximadamente 2 bilhões de pessoas no mundo estão em níveis moderados e graves de insegurança alimentar, e que 8,9% da população mundial estão na condição de subnutrição. O documento adverte ainda que o objetivo de extinguir a fome até 2030 (Fome Zero) não será atingido e que apesar da produção mundial de alimentos ter aumentado nas duas últimas décadas, isso não se traduziu em aumento na disponibilidade de alimentos nutritivos, evidenciando a grandes discrepâncias na disponibilidade per capita de alimentos e o alto custo de uma alimentação saudável, muito superior à linha de pobreza internacional, estabelecida em U$$ 1,90 por dia. As projeções não são animadoras e segundo a FAO, em 2030 o número de pessoas subnutridas ultrapassaria 840 milhões, desses 36 milhões de pessoas apenas na América do Sul, cerca de 7,7% da população.
Se o relatório mostra o cenário adverso da segurança alimentar em 2019, ele também chama a atenção para os efeitos da pandemia e do pós-pandemia sobre a fome mundial. Impactos socioeconômicos e de saúde da pandemia Covid-19 resvalam na segurança alimentar e tornam as pessoas ainda mais vulneráveis, piorando assim as perspectivas e gerando bolsas de insegurança alimentar. As projeções da ONU mostram uma relação direta entre crescimento econômico e disponibilidade de alimentos. Estima-se, em média que 1 ponto percentual da redução do crescimento do PIB mundial reduz o suprimento de alimentos nos países importadores líquidos em 0,306%. Segundo os cenários estimados pela FAO, a pandemia do Covid-19 deverá gerar em 2020, de 83 milhões a 132 milhões de desnutridos.
No Brasil, ao longo das últimas duas décadas, diversas políticas públicas foram criadas, o que contribuiu para a saída do chamado “Mapa da Fome”, lista de países com mais de 5% da população ingerindo menos calorias que o recomendável. Contudo, desde de 2016 as políticas sociais com impacto na renda e na pobreza dos brasileiros perderam força. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), um dos primeiros atos do governo do presidente Bolsonaro, a desaceleração do crescimento econômico, as políticas econômicas de austeridade fiscal dos últimos anos, a redução do poder de compra das famílias e a alta nos preços dos alimentos, agravaram o desmonte das políticas sociais e colocaram o Brasil de volta ao “Mapa da fome” em 2018, segundo o IBGE. É claro que os efeitos do Covid-19 no Brasil evidenciam ainda mais essa realidade, agravada pela enorme discrepância sociais que existem no país. Não é difícil perceber que a renda familiar está associada à segurança alimentar e nutricional e o grande desafio nesse momento é assegurar diferentes mecanismos que contribuam para garantir o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), fortalecendo políticas de proteção social, distribuição da agricultura familiar e potencializando estratégias de abastecimento alimentar. É indiscutível que num país onde mais de 25% da população brasileira vive em situação de pobreza ou extrema pobreza e com suas vulnerabilidades ampliadas com a Covid-19, medidas voltadas à garantia de renda emergencial são condições fundamentais para a proteção social e a promoção da segurança alimentar e nutricional.
Que a morte da criança venezuelana, além de partir nossos corações e comover a sociedade, sirva de alerta para uma outra pandemia, bem mais antiga e silenciosa que o Covid-19, que é a FOME; provocando assim a conscientização e mobilização da sociedade como um todo em busca de um mundo, no mínimo mais justo!
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