Se a sorte não quiser que eu faça parte da História da Música Popular Brasileira, já me satisfaz que faça parte da história dos que gostam daquilo que eu canto. (R.C.)
Vira e mexe, conversando amenidades com amigos, sou levado a contar essa história: fui sempre muito reticente em reverenciar pessoas famosas, políticos de prestígio, intelectuais importantes, artistas consagrados. Causavam-me espanto as emoções incontidas, as manifestações de homens e mulheres à frente de hotéis em que se hospedam seus ídolos.
Amante das viagens, quis o destino cruzasse eu, aqui e além, com muitos grandes nomes do teatro, da literatura, do cinema e, mesmo, do mundo político. Conversei, não raro demoradamente, ocorre-me lembrar agora, com Darcy Ribeiro, Edgar Morin, Luiz Inácio Lula da Silva, Paulo César Saracceni, Cacá Diegues, Walter Lima Jr., Jorge Amado, Zela Gattai, e muitos jogadores que entraram para a história do futebol mundial, nomeadamente os do Botafogo: Jairzinho, Gerson, Paulo César Caju, Leônidas (o zagueiro, não o centroavante do Vasco, claro) e alguns dos quais me tornaria amigo, como Valtencir e Afonsinho.
Irredutível, só me pensava tiete de algum medalhão, por uma dessas razões que a própria razão desconhece, à maneira de Pascal, se deparasse com Carlos Drummond de Andrade ou Roberto Carlos, dizia eu.
Com o primeiro, jamais estive, não tendo sido raras as vezes em que, no Rio, postei-me nas proximidades do seu apartamento na simples esperança de que a sorte me pusesse diante do autor de A Rosa do Povo. Mais tarde, faria de sua obra objeto de um exame acadêmico Stricto Sensu, e isto me bastou. Tornei-me, pelos caminhos da pesquisa, amigo íntimo do Urso Polar.
Com o segundo, aconteceu de estar ele hospedado no mesmo hotel, em Juazeiro do Norte, onde eu passava com amigos um final de semana. Ainda muito cedo, à frente das iguarias do café da manhã, deparamos com Lady Laura, que, inusitadamente, acompanhava o filho em sua turnê por cidades do Nordeste. A mim, já me era suficiente estar lado a lado com a mãe do ídolo. Aos amigos, não. Depois de muita insistência, a boa senhora generosamente cedeu ao apelo de que nos levasse a conhecer o filho “adorado”, que, na contramão do que era provável, dormira dentro do seu ônibus, a pouco passos de onde estávamos.
Atendendo ao que supostamente lhe fora ordenado por aquela mulher pequena e frágil, de tão doce e delicada que era, aparece Roberto Carlos, acenando-nos entre simpático e impaciente. Em princípio, resiste aos pedidos de que desça e venha até seus “súditos”, àquela altura, magnetizados diante de um Rei, paradoxo à parte, convincente e irreal.
Eis que surpreende a todos, e determina, ao motorista incrédulo, que lhe abra a porta do ônibus, descendo, vacilante, a escadinha que devolve o deus mítico à realidade dos homens.
Diante de nós, abraçando-nos carinhosamente, na intimidade improvável de minutos que foram a própria eternidade, na simplicidade de um jeans desbotado, estava ali Roberto Carlos, exercendo sobre nós um tipo de sortilégio que nunca saberei definir com palavras.
Desde então pude compreender melhor essa visão idealizada que se faz dos ídolos, essa emoção a que se entregam milhares de pessoas diante de um palco em que tocam e cantam os seus artistas prediletos.
Por que Drummond ou Roberto Carlos? Não sei. Supostamente pelas mesmas razões que levaram um artista de prestígio internacional, um gênio da inteligência brasileira, como Caetano Veloso, a descrever em suas memórias, Verdade Tropical, como se deu o seu encontro com Roberto Carlos, em Londres: “Ao atender seu telefonema para marcar a visita, Rosa Maria Dias não acreditou que fosse verdade e, ao render-se à evidência, chorou. […] Como um rei de fato, ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade (e propriedade) […] do que intelectuais de direita e de esquerda, que a princípio não nos entendiam e agora queriam nos mitificar: ele era o Brasil profundo. […] Foi algo avassalador. Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um, assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido preto de Nice, enquanto Roberto Carlos repetia com ternura: “Bobo, bobo”.
Como à época da ditadura, a que se deixou propagandear como um serviçal, ainda hoje faço a Roberto Carlos, do ponto de vista político, sérias restrições. Abomino, mesmo, suas posições quando o assunto é política.
Por que, então, devoto ao artista, que conta hoje 80 anos, tanta admiração? Não sei. A arte às vezes vale por si só… É enorme, quase perfeito, o intérprete romântico… Talvez por isso, porque me emociona como poucos quando canta. Talvez porque tenha marcado de forma indelével a minha geração – e porque suas canções, desenterrando lembranças, se confundam com as minhas muitas histórias de amor.
Parabéns Roberto!
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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