Ivan Lima Verde
Março de 2025
Crônica memorialista e sentimental de
Ivan Lima Verde, escrita em louvor à Penha e aos 99 anos de Elze Rocha Bezerra.
Apesar de criado e educado na cidade grande de Fortaleza, tenho a alma sertaneja, porque forjada nas cercanias da ribeira do Jaguaribe, no verdor do Sítio Penha, no Iguatu do meu querer.
Foi ali, no Sítio Penha, menino em férias escolares, onde passei os melhores dias da minha infância e parte da adolescência, vendo, pela primeira vez, o dia amanhecer embalado pelo canto do galo, do canário da terra e do sabiá, tendo ao fundo o mugir dolente do gado leiteiro que, no curral ao lado da casa que me acolhia, anunciava a hora do leite mungido, que ainda hoje atiça a minha memória gustativa.
Foi lá, também, que senti pela primeira vez o cheiro do bagaço saído da moenda do velho engenho da Penha, o qual, da garapa extraída da cana, depois de passar pelos tachos e pela gamela, produzia a rapadura, a batida temperada e o alfenim, este puxado pelas mãos habilidosas e engomadas das mulheres do lugar, enquanto nós, os meninos, encantados com aquela cena, aguardávamos o final da lida para gulosamente saborearmos, ainda quente, a “rapa da gamela”.
Na Penha vi também o Jaguaribe sendo agente do fenômeno conhecido como “cabeça d’água”, que acontece quando, com as fortes chuvas na cabeceira do rio, seu volume sobe repentinamente, fazendo com que as novas águas desçam em enxurrada, arrastando tudo o que encontram pela frente, inclusive a tranquilidade das populações ribeirinhas que, mesmo assustadas, dão vivas ao rio agitado. Foi assim, pois, do alto de uma ribanceira do Jaguaribe, que vi o espetáculo acontecer, musicado pelo roncar daquelas águas barrentas, como a festejar o prenúncio da fartura trazida pelo bom inverno, sonho maior de todo sertanejo.
Na verdade, foi naquele lugar bucólico que vi tantas outras coisas belas e singelas que a cidade grande não mostra, porque não as possui.
Ah que saudade da Penha de outrora, quando, à exceção do Bitônio, no seu Jeep Willys Overland, e do Seu Arlindo, na sua motocicleta barulhenta, os demais moradores de lá iam para a grande feira do Iguatu, numa estrada trepidante de uma légua, a pé, a cavalo, de carroça, em velhas bicicletas e, já com um certo charme, no reboque do trator do Seu Zé Bezerra, privilégio dos seus familiares e agregados, como eu, um itinerante menino de férias.
Saudade enorme das então permitidas caçadas de baladeira; das ainda não proibidas armações de fojo para pegar preá; dos passeios a cavalo; das caminhadas pelos canais que irrigavam as plantações locais; das pescarias; dos memoráveis banhos de rio e de tantos outros folguedos só terminados às dez da noite, quando o motor da luz, num piscar de lâmpadas, avisava a hora de recolher, sequenciada pelo acender das lamparinas e dos lampiões que passavam a iluminar o interior das casas, onde, em algumas delas, tinha início a reza obrigatória do terço em família, como na casa de Dona Elze, uma católica devotada, de muito prestígio na comunidade. Então, terminado o terço, vinha o sono tranquilo daquela gente pacata, acalentado pelo coaxar dos sapos e das rãs, antecedendo o despertar de um novo dia que raiava acompanhado do cheiro gostoso do mato orvalhado pelo sereno da madrugada.
É muita saudade! Saudade dos meus amigos Valdísio – o mais próximo –, Vilmar, Marcondes, Juarez, Arlúcio, Chico de Lucíola, Newton – chamado de “Neuton” –, Neiva e Ivan de Nazinha. Saudade dos meus primos Valdemir e Zé Walner que, embora mais novos do que eu, já participavam de algumas das nossas travessuras. Esses dois primos, filhos de Zé Bezerra e Elze, ganharam depois, sob as bênçãos divinas, os irmãos Deocleciano (Dodó), Laura (Laurinha), Miguel Weimar e Luiz Carlos, todos da melhor cepa.
Saudade danada da linda e meiga Mariquinha, que morava próximo ao Fomento Agrícola, por quem nutri uma grande paixão platônica ainda guardada no baú das minhas reminiscências.
Saudade da sensual Angelita que, no balcão da bodega do Seu André, me ensinou as primeiras lições da cartilha do Deus Eros, da Mitologia Grega.
Saudade, e muita, dos antigos moradores da Penha, como da matriarca Dona Selvita e dos seus filhos Zé Bezerra, Pinheiro, Wellington, Weimar, Toinho, Nadir, Naíde, Maria Bezerra e Nadira. Saudade do Seu André e Dona Maria; do Seu Arlindo e Dona Lucíola; do Seu Quinca Modesto e Dona Aldeíde; do Seu Ademar e Dona Altair; do Seu Francisquinho Bezerra; do Seu Valdemar do Fomento; do Bianor; do Raimundinho Nogueira; do Zé de Santino e seu violão; do Antônio Bitu, o multiatleta para quem bati muitas palmas; do Chico Caboclo – agregado da família do Seu André –, um índio corpulento, transformado em instrutor de ginástica da meninada do lugar; do Chico Jorge, operador do potente motor da irrigação, além de outros moradores queridos cujos nomes o cansaço da minha memória me faz não lembrar. Ufa! Lembrei-me de mais um, o Lilica, de pele escura, filho da lavadeira Dôra, que, garoto ainda, enfrentando todos os preconceitos da época – que eram muitos –, teve a coragem de assumir abertamente o pioneirismo gay naquelas paragens.
Depois desse rosário de saudades e de exaltação à Penha, devo esclarecer que não foi lá que nasci, mas no centro da cidade de Iguatu, na praça Cel. Celso Lima Verde, de onde, criança de colo, fui levado pelos meus pais, juntamente com os meus cinco irmãos, para morar em Fortaleza, só retornando à terra natal com dez anos de idade, quando, de férias escolares, aportei pela primeira vez no Sítio Penha, recebido pela prima Elze, filha da minha querida e saudosa tia Laura, irmã do meu pai, então já falecido. A prima Elze, dada a nossa diferença de idade, era para mim como uma tia bondosa que me acolheu na sua casa com muita atenção e carinho, juntamente com seu marido Zé Bezerra, de quem guardo boas recordações e uma imensa saudade. E por falar em boas recordações, destaco que aprendi a gostar de Luiz Gonzaga vendo Zé Bezerra selar seu cavalo Pombo Roxo cantarolando “meu cigarro de palha, meu cavalo ligeiro, minha rede de malha, meu cachorro trigueiro…”. Ah, que tempo bom!
Por sua vez, Elze, de personalidade forte e marcante, tornou-se adorada em todo a Penha e seus arredores, sobretudo pela sua benfazeja atuação como professora competente e austera, enaltecida por todos os que tiveram o privilégio do seu magistério. A propósito, embora não tendo sido seu aluno de carteira escolar, incluo-me no rol desses privilegiados, porque dela recebi valiosas lições de gramática e de interpretação de textos, principalmente quando chamado a ouvir, lidas por ela, as crônicas de Rachel de Queiroz, semanalmente publicadas na última página da Revista O Cruzeiro, de circulação nacional.
Em verdade, das lições da prima Elze e do primo Wilson Holanda Lima Verde – que faz parte de outra história – foi que senti desabrochar em mim o gosto pelas letras, iniciado, jovem ainda, pela leitura dos escritores nordestinos do chamado “Romance de Trinta”, tendo à frente, além de Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado.
Agora, passados tantos anos, quando já estamos na rota do centenário do nascimento de Elze Rocha Bezerra, curvo-me diante dela num gesto de reverência a essa benemérita moradora da velha, amada e inesquecível Penha, relicário das saudades do meu tempo de menino.
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