Picasso – Arte e contradições

11/03/2023

Pode-se chorar pedras/lágrimas como gotas de pedras/dentes que caem dos olhos/como se os olhos chorassem dentaduras de pedras/Nunca a dor chorou tão grande dor/lançando blocos de pedras/dentes e molares de dor/de pedra. (Poema de Rafael Alberti sobre a tela Mulher Chorando)*

O cinquentenário da morte de Pablo Picasso, maior nome da arte moderna mundial, em 2023, enseja a retomada de um debate extremamente rico em torno da relação artista/obra. Em meus tempos de cátedra nas disciplinas de história da arte e introdução à filosofia da arte, na universidade, muitas vezes deparava com questionamentos dessa natureza: “Professor como se deve lidar com essas diferenças?” O caso de Pablo Picasso era recorrentemente levantado, e os olhares sobre a questão, objeto de enriquecedoras polêmicas.

Em sua obra “Picasso, o Minotauro”, a jornalista Sophie Chauveau, explora as contradições homem/artista e conclui: Picasso era “ciumento”, “perverso” e “destrutivo”. Não sem razão, portanto, na esteira dos grandes eventos que marcam os 50 anos da morte do artista andaluz, para ficar num exemplo de maior relevância, a relação dele com as mulheres será objeto de importante discussão no Brooklin Museum de Nova York.

Para dar ao leitor ou leitora uma ideia do que está por trás da polêmica, recuo no tempo e reporto-me a dois fatos envolvendo o pintor de “Lesdemoiselles d’Avignon” e sua quinta mulher, a fotógrafa, pintora e poeta de origem croata, Dora Maar. Vamos ao primeiro deles.

Conhecendo-a superficialmente (fora apresentada a ele pelo poeta Paul Éluard), um dia Picasso a encontra brincando de fincar um canivete entre os dedos sobre a mesa de uma taberna. Numa das muitas repetições, eis que Dora Maar fere um dedo e o sangue logo encharca-lhe a luva. Picasso se aproxima dela e pede-lhe para guardar como lembrança sua luva suja de sangue, ao que Dora responde: “Por que não leva com você minha mão?” Saíram da taberna juntos, e assim viveriam por longos anos uma relação extremamente tóxica. Possuidor de uma personalidade doentemente vaidosa, machista e violento, Picasso submeteria Dora Maar a uma vida em nada condizente com o que fora antes de conhecê-lo. Passemos ao segundo fato.

Um dia, em 1945, Dora Maar pede ao pintor e a um amigo que se ajoelhem diante dela para adorar a Deus. Vitimada pelos maus-tratos do amante, Dora Maar enlouquecera e jamais se recuperaria de todo da doença. Eis um novo gancho para se levar adiante a polêmica.

Picasso realizaria numerosos retratos de Dora Maar, entre os quais destacam-se dois cujos traços fortemente inspirados no expressionismo revelam para além dos conflitos sociais tão recorrentes no conjunto de sua obra. Se, numa perspectiva é nítida a visada dramática sobre a Guerra Civil Espanhola, a exemplo do que fez na monumental “Guernica”, 1937, noutra, traz à tona as crises de relacionamento que marcaram sua vida com as muitas mulheres com quem se relacionou, nomeadamente com Dora Maar.

Em “Retrato de Dora Maar”, 1937, óleo sobre tela exposto no Museu Picasso, Paris, deparamos com uma mulher sentada dentro de um ambiente claustrofóbico, como a sugerir um tipo de prisão a que está condenada, em que pese a serenidade de sua expressão a um tempo elegante e pensativa. Do ponto de vista formal, no entanto, a obra assenta-se num admirável equilíbrio entre o traçado geométrico e a força decorativa da imagem. Veem-se linhas em que se combinam o perspectivismo (pontos de fuga) e a centralidade da figura retratada. Ainda que intencionalmente deformada, a fatura estética resulta num registro belo e sedutor, como a dizer da mulher talentosa e inteligente que foi Dora Maar.

Do mesmo ano, no entanto, “Mulher Chorando”, coleção particular, Londres, constitui um dos mais dramáticos, tensos e comoventes quadros de Picasso. Nele é visível o desprezo por qualquer correspondência entre as formas adotadas pelo artista e a realidade anatômica de Dora Maar: as mãos crispadas sobre o rosto em pranto convulsivo, os dentes como a escorrer dos olhos como blocos de pedras, no dizer poético de Rafael Alberti sobre a tela. Embora se saiba que essas distorções estão relacionadas com a percepção que Picasso tinha do mundo, marcada pelo que levaria críticos a defender a presença de elementos surrealistas em sua obra, o que considero uma subjetivação improvável, a expressão monstruosa da mulher reflete as dores de Dora Maar sob a masculinidade tóxica do amante.

Gênio, mulherengo, narcísico, dono de um temperamento ciclotímico, Pablo Picasso morreu em 8 de abril de 1973. É nome inconteste do ponto de vista estritamente artístico, tendo transitado com igual competência da fase Azul (1901-1904), passando pela fase Rosa (1905-1907) e pela Africana (1907-1909), até chegar aos dois cubismos, o analítico e o sintético, entre 1909 e 1919. Os quadros, no entanto, que mais dizem de sua personalidade flutuante, embora extraordinários como objetos rigorosamente estéticos, situam-se entre o surrealismo improvável e o expressionismo pungente com que imortalizou mulheres lindas e talentosas com as quais viveu.

No Março da Mulher, a um mês da data exata, qual o Picasso para o qual se devem voltar nossos olhares no cinquentenário desde o seu falecimento? O dos olhos amendoados de Fernande Olivier, o do rosto ovalado de Olga Khohlova, o da cabeleira abundante de Françoise Gilot, o da loura terna e doce de Théresè Walter, a da angustiada e bela Dora Maar, da indefinível feminilidade de Jacqueline (todas retratadas por suas pinceladas desconcertantes), ou o do machista ranzinza e indefensável de que nos falam seus melhores biógrafos?

*Tradução livre minha.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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