Leitor me aborda sobre ‘live’ de que participarei nessa segunda-feira sobre vida e obra de Dostoiévski, e, cobrindo-se de gentileza para com este colunista, pelo que agradeço publicamente, indaga sobre o livro do escritor russo de que mais gosto. Vamos por parte.
Começo por evidenciar, não me furtando ao bom direito de incorrer em subjetivações, afinal era informal a nossa conversa, que, em se tratando de um artista da grandeza de Fiódor Dostoiévski, o livro de que mais gosto é aquele que tenho em mãos sempre que decido revisitar a vastíssima obra do escritor russo. Seja ele qual for.
Jocosidade à parte, tentarei ser agora mais objetivo na minha resposta: o romance do escritor russo de que mais gosto é O Idiota, sobre o qual aproveito para tecer aqui algumas considerações.
Publicado em 1869, o romance foi produzido em meio a sérios problemas de saúde do autor, agravados, diga-se em tempo, por dificuldades financeiras que o atormentaram ao longo de toda a sua vida. Não é sem razão, portanto, que há no romance muito do que é mesmo uma característica presente em grande parte de sua obra: a técnica da transposição autobiográfica. Espírito em constante conflito, Dostoiévski projeta em diferentes personagens o seu sofrimento pessoal, bem como é visível no protagonista de O Idiota, o príncipe Míchkin, misto de Cristo e Dom Quixote que atravessa a belíssima narrativa do romance oscilando entre o humanismo mais refinado e as demonstrações de ingenuidade que o expõem ao ridículo.
Mas o livro é muito mais que a representação de conflitos pessoais do autor, mesmo quando lido sob a luz do que Dostoiévski realizaria, por exemplo, no grandioso Os Irmãos Karamázov, seu último romance, que é considerado por muitos sua obra-prima.
Há aqui (refiro-me a O Idiota), uma luminosa sondagem da alma humana, uma viagem pelo que existe de mais profundo e inconfessável em cada ser, em alguma porção capaz de sentimentos e atitudes as mais contraditórias. Nesse sentido é que sobressaem, na tessitura de um romance magnífico, personagens extremamente bem construídos, do desregrado Rogójin à encantadora Nastácia Filíppovna, que constituem um tipo de extensão da personagem central e compõem, com ela, a tríade em redor da qual se agitam tantos outros tipos dessa galeria de personagens soberbos criados pela imaginação de um gênio. Por isso, tamanha é a complexidade da obra e tantos os ângulos através dos quais Dostoiévski empenha-se em desvendar o mistério da alma humana (psicanalítico, filosófico, existencial), realizando uma experiência estética inconfundível, que resta difícil dizer o tema do romance. Ouso destacar, entre muitos, o tema que me parece central, na linha do que professa um estudioso de coturno de sua obra, Boris Schineiderman, para quem O Idiota é um livro sobre a beleza, “a bondade humana em estado puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota, um inadaptado”.
Urge salientar, no entanto, que não se trata aqui da idiotice tal qual a entende o senso comum, e que existe à profusão num tempo em que se exaltam mitos e mitômanos, mas da “idiotia”, estado de pureza interior absoluta, algo que transita da bondade sublime de Cristo para a ingenuidade fascinante de Dom Quixote.
Eis o meu romance preferido no ‘planeta’ chamado Dostoiévski.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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