Com a morte do diplomata Alberto da Costa e Silva, membro da ABL, perdeu o Brasil um dos seus intelectuais mais completos. Autor de livros que não podem faltar na estante de qualquer estudioso da formação do país, a exemplo de “A Enxada e a Lança” (1992) e ” A Manilha e o Libambo” (2002), pelo que trazem da presença africana em diferentes vertentes e realidades geográficas (Saara, Mediterrâneo, Atlântico e Índico), com indispensáveis registros do trabalho negro escravizado desde o Egito, passando pela Grécia, Império Romano, Índia, China e toda a extensão oceânica da Europa, Alberto da Costa e Silva não encontra parâmetro, no Brasil, entre aqueles que se dedicaram a estudar a África e os africanos. Trata-se de livros clássicos, no sentido mais exigente do ponto de vista acadêmico, muito embora vazados em linguagem elegante, enxuta, aqui e além emocional, e envolvente.
Mesmo uma resenha rápida dessas obras, no entanto, na linha do que tenho feito com frequência, exigiriam espaço e dedicação maiores do que me permite uma coluna de jornal, razão por que me lanço a comentar o que o próprio Alberto da Costa e Silva define como “ficções da memória”, isto é, os livros “Espelho do Príncipe” (1994) e “Invenção do Desenho” (2011), belíssimos exemplos do mais refinado memorialismo em língua portuguesa.
Nascido em São Paulo em 1931, Alberto da Costa e Silva passou a infância em Fortaleza, só mais tarde, início da juventude, transferindo-se para o Rio de Janeiro. Se é na capital fluminense que se inicia na atividade literária, com a publicação do seu primeiro livro, “O Parque e Outros Poemas”, foi de sua infância na capital do estado do Ceará que o futuro historiador, poeta e diplomata extraiu a matéria prima de seu memorialismo emocional e singularmente poético, primeiro passo de uma volta ao passado no Brasil e em diferentes países em que atuou em ações diplomáticas: Portugal, Angola, Etiópia e Costa do Marfim, fixando-se depois em Caracas, Washington e Madri.
Em se tratando de um escritor de tamanha sensibilidade estética, urge ressaltar que o memorialismo de Alberto da Costa e Silva confunde-se mesmo com a vocação do poeta, alastrando-se por entre as páginas de sua autobiografia com a leveza de imagens que se formam, na medida em que o menino vai se tornando homem, com a mesma porção de verdade e incontida capacidade de invenção. Não à toa, insisto, é que o autor subintitula ambos os livros de “ficções da memória”, como a assumir-se, à maneira de Fernando Pessoa, como um fingidor “que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Mas até nisso, redimensionando a força de suas recordações, vê-se o depurado da costura narrativa, como na passagem em que, voltando de Campos do Jordão, onde se tratava de uma tuberculose, dirige-se à Lúcia Teresa como em despedida: “Como lhe falasse do modo mais oblíquo possível, ela entendeu que dela me despedia para sempre, mas não que eu estava lentamente a morrer. E se pôs linda contra o dia que findava, a luz serena a emendar com a paisagem o seu vestido estampado com minúsculas florinhas. Olhei para o chão, amarfanhado por dentro: ela calçava sandálias brancas de saltinho.”
E na sequência, mais que o prosador de fino trato, é o poeta que salta aos olhos do leitor, terno, doce, e, no entanto, alguma coisa estoico, a enfrentar a realidade: “Ao levantar a cabeça, senti que estávamos ambos feridos: o punhal, em vez de cabo e lâmina, tinha duas pontas. Estávamos ali, sem coragem para nos tomarmos pelas mãos, num jardim que se fizera inteiramente branco. De súbito, não havia mais nada em derredor, nem rua, nem prédios, nem árvores. Éramos duas figuras sombreadas na alvura de uma folha de papel. E foi dessa ausência de paisagem, enquanto a minha mesquinhez se voltava numa tristeza mansa, que ela se afastou, a se fingir firme e serena” (Invenção do Desenho, Nova Fronteira, 2011, p. 87).
Ao morrer, é tanta a influência que exerceu sobre intelectuais brasileiros, que não é muito afirmar que Alberto da Costa e Silva, assim como seguidores fiéis em diferentes correntes da nossa melhor historiografia, deixa órfã toda uma geração de pesquisadores da questão racial no Brasil. Sob este aspecto, pois, é que me ocorrem as palavras que me escreveu, de São Paulo, a historiadora Lilia Schwarcz: “Ele era muito especial. Meu pai, meu mestre.”
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
0 comentários