Pra não dizer que não falei de flores

01/03/2024

“Caminhando e cantando e seguindo a canção/Somos todos iguais/Braços dados ou não/Nas escolas, nas ruas, campos, construções/Caminhando e cantando e seguindo a canção”.

Era 1968, auge dos tenebrosos acontecimentos advindos do Golpe Militar de 1964. Nos quartéis, os mesmos a que Geraldo Vandré faz referência mais adiante, na belíssima “Pra não dizer que não falei de flores”, estudantes, intelectuais, artistas e trabalhadores eram perversamente torturados.

Muitos deles, depois de devastados a golpes de cacetete, sufocados dentro de sacos plásticos ou dependurados como frangos em assadeiras de bares (“pau de arara”, na linguagem dos torturadores), sem esquecer os choques elétricos em partes íntimas ou a partir da cabeça e membros, a terrível “cadeira do dragão”, ainda agonizantes ou mortos, eram atirados de helicópteros em alto-mar.

Os versos de abertura do poema, como se vê, amparando-se dominantemente em verbos no gerúndio, “caminhando e cantando”, constituem um apelo à união de todos (estudantes, populares, trabalhadores do campo e da construção civil etc.) contra o regime de terror.

Do ponto de vista exegético, todavia, tanto quanto a função apelativa que se pode visualizar de forma mais explícita, o poeta refere-se sub-repticiamente à confiança na possibilidade de transformação da realidade brutal, quase inumana, imposta a baionetas e mecanismos impensáveis de tortura física e psicológica pelos militares golpistas: lutando ao som de hinos revolucionários, cantando portanto, subentende-se que a luta não será em vão, e que a sociedade livre e justa há de ser construída com a participação de todos. Tal “convocação” se intensifica no estribilho, repetido à exaustão na letra da música, pelo uso estilizado do imperativo “vem”.

“Vem, vamos embora/Que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora/Não espera acontecer”.

O poeta refere-se à consciência de que o país vivia dias de chumbo: congresso fechado, atos institucionais que cerceavam as liberdades políticas, mortos e desaparecidos jamais contados com exatidão, exílio imposto a centenas de brasileiros impedidos de pensar e expressar sua indignação em face da realidade do país – tudo debaixo de ordens saídas dos quarteis -, ordens que culminariam no AI5, promulgado no mesmo ano em que “Para não dizer que não falei de flores” era defendida por Vandré no Festival Internacional da Canção.

No título, o substantivo “flores”, ironicamente usado, pois que ao final o eu lírico reporta-se à necessidade de colocá-las no chão, remete ao ideário hippie de paz e amor, o “flower power” popularizado no semiótico gesto de erguer o indicador e o dedo médio em V de vitória, a bela utopia de jovens do mundo inteiro, nomeadamente das cidades grandes.

Oportuno lembrar, por exemplo, que em maio de 1968 Paris seria o epicentro do mais famigerado movimento de contestação contra o autoritarismo dos poderes constituídos.

“Há soldados armados/Amados ou não/Quase sempre perdidos de armas na mão/Nos quarteis lhes ensinam uma antiga lição/De morrer pela pátria/E viver sem razão”.

A alusão aos militares como promotores dos horrores que assolavam o país, a esta altura é incontrastável, muito embora, aos olhos do poeta, reste a atenuante de que os soldados, não os fardados de alta patente, mas instrumentos da prática autoritária do golpismo de 1964, muitas vezes agiam como seres descerebrados, “perdidos de armas na mão”, a serviço do regime de exceção como vítimas indiretas, matadores de si mesmos. O gado dos dias de hoje.

O fecho poético, emblematicamente vazado numa linguagem de recorte referencial, como a deslizar da conotação para a denotação, num tipo de objetivação que ressalta o utópico como possibilidade de superação das forças inimigas, é obra-prima do cancioneiro popular, poesia capaz de ganhar o status de grande literatura, independentemente da música que lhe serve de suporte, ela mesma inferior ao poema como objeto estético, muito embora linda em sua simplicidade rigorosamente melódica: “A certeza na frente/A história na mão/Caminhando e cantando/E seguindo a canção/Aprendendo e ensinando uma nova lição”.

Elevada à condição de hino da esquerda brasileira, e voz de resistência dos estudantes de diferentes níveis, “Caminhando” (como se tornaria conhecida a canção de Geraldo Vandré), é algo eticamente intransferível como manifesto artístico e político.

Em sua dimensão meramente estética, fazendo valer um pressuposto filosófico de toda e qualquer expressão artística, pode ser ouvida e cantada aos quatro cantos do Brasil. Nunca por aqueles que, por ignorância intelectual ou oportunismo inescrupuloso, a utilizam na contramão de sua razão de ser. É inversão de sentido, é apropriação indébita, é crime, ao lado de ser desfaçatez.

O poema, entre tantas metáforas carregadas de sugestões, é um tipo de homenagem respeitosa às vítimas do regime militar, um afago no coração em sangue de seus familiares.

Usá-lo em ato público que propõe um golpe de Estado, que exalta tortura e torturadores, que professa amor à ditadura, que se insinua contra o voto popular e espezinha com pés sujos a democracia, é como uma pilhéria de mau gosto, não fosse antes de tudo um crime contra os valores fundamentais da sociedade ordeira e da própria Arte.

O toque de um berrante lhes caberia melhor.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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