Em um cantinho da sala de casa, no Sítio Cachoeirinha dos Coelhos, na zona rural do município de Cedro, Maria Júlia passou a estudar desde que as aulas passaram a ser remotas por conta da pandemia da Covid-19. A estudante, que tem 10 anos de idade, gosta muito de ler, tem até uma pequena quantidade de livros. E é folheando as páginas que ela busca melhorar ainda mais a leitura e aumentar seus conhecimentos. “Eu gosto muito de ler. Gosto de gibis. Li também um livro sobre a história de Jesus. É muito importante a gente aprender a ler, porque parece que a gente viaja pra dentro de cada história”, conta.
E o legal de tudo isso é que moradores do distrito de Santo Antônio, onde a Júlia mora, um projeto social passou a levar os livros até a casa deles. É a Biblioteca em Movimento, do Instituto Zuza Laureno. Os livros vão de carona na moto do agricultor Ivan Caetano. Ele vende produtos de limpeza, que ajudam na renda da família, e aproveita para carregar os livros. Ivan percorre em média 60km a cada 15 dias para entregar os livros. “Faço isso com muita satisfação. A gente conversando no Instituto Zuza Laureno, o Ivanildo Lopes fez essa sugestão. Deu certinho nesse período de pandemia. Como já faço as vendas dos produtos e conheço muito sítios por aqui, passei a carregar os livros para as famílias. É uma emoção muito grande. Faço isso com muito prazer”, disse, afirmando que na época da infância não teve muito acesso aos estudos porque tinha que ajudar na lida da roça. “Eu não tenho um bom estudo. Mas aprendi muito também com a vida. Eu sempre gostei de ficar por dentro de todos os assuntos. Levar e trazer esses livros é gratificante poder compartilhar o conhecimento”.
Biblioteca Vó Nininha
Os livros emprestados para os moradores fazem parte do acervo da Biblioteca Vó Nininha, do próprio instituto, que ganhou recentemente dois importantes reforços: 40 livros doados pelo professor José Roberto Duarte, do Oficina de Redação de Iguatu, e também do Projeto Mochileiro pela Leitura, fundado pelo ex-carteiro alagoano Tiago Alves, que esteve recentemente no instituto fazendo a entrega dos livros. “Pra gente uma grande satisfação em receber essas doações porque temos a nossa biblioteca que é aberta a nossa comunidade rural. Todos têm acesso. E a chegada de mais livros ajuda ainda mais o interesse das pessoas pela leitura. Ficamos surpresos e muito felizes, quando Tiago Alves, que é um cara que vem viajando pelo Brasil distribuindo livros, disse que viria conhecer nosso Instituto. Pra gente foi uma honra. Essas doações irão enriquecer ainda mais nossa biblioteca”, ressalta Ivanildo Lopes, presidente do Instituto Zuza Laureno.
O instituto fundado há cinco anos realiza diversas ações de sociais, culturais e esportivas que impactam diretamente na vida dos moradores. “Aqui eu faço aulas de violão e karatê. Já fiz outras atividades, mas espero que voltem a acontecer de novo porque pararam por conta da pandemia. Achei muito legal os livros que a biblioteca ganhou. Depois vou escolher um pra ler”, pontou a estudante Clarisse Bezerra.
Mochileiro pela Educação
E foram essas ações que despertaram a curiosidade e interesse de Tiago Silva em conhecer o instituto. O ex-carteiro alagoano e idealizador do projeto Mochileiro pela Educação, há oito anos percorre o Brasil. Já visitou mais de 10 estados, 66 cidades e distribuiu mais de 8 mil livros, promoveu também palestras e oficinas com o objetivo de disseminar a educação e ajudar a transformar vidas. “Eu sempre tive essa ideia de sair por aí. Eu sempre gostei de ler e resolvi deixar meu trabalho de carteiro para me dedicar a esse projeto. Coloquei alguns livros na mochila e começaram as primeiras doações. Hoje a gente toca como um negócio. Tenho uma equipe que me ajuda, além que contamos com apoio de algumas empresas parceiras que acreditam no nosso projeto”, disse Tiago Alves, idealizador do Mochileiro pela Educação.
Biblioteca Comunitária
Em Iguatu, há cinco anos funciona no Bairro Vila Neuma, na periferia da cidade, a Biblioteca Comunitária Francisco Ítalo Nunes. O equipamento foi criado por iniciativa do morador da comunidade, o ex-vereador Antônio Baixinho, e faz parte da Associação Cultural do bairro. Por conta da pandemia, a biblioteca está retornando de forma gradativa para receber as pessoas, público formado na maioria por estudantes. Além do acesso aos livros, Marciana Lopes, responsável pelo equipamento, dá aulas de reforço gratuito para os estudantes. “Além de oportunizar o acesso à leitura, a ideia é desenvolver novas ações culturais envolvendo ainda mais a comunidade, com atividades voltadas para música, dança e o teatro. A pandemia atrapalhou nossos projetos, mas em breve vamos correr atrás de apoio, de parceiros para ajudar nossas crianças”, contou Marciana.
OCDE
De acordo com recente relatório divulgado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, a renda e a posição socioeconômica têm grande influência sobre a capacidade de leitura e aprendizado dos jovens. Essa desigualdade é mais acentuada no Brasil do que em grande parte do mundo. A organização usou como base comparativa os resultados de leitura do PISA 2018, o Exame Internacional é aplicado pela entidade em jovens de 15 anos em 38 países membros do grupo, em uma escala que vale de 1 a 6. O nível de leitura considerado básico é o 2. Os alunos brasileiros pontuaram, em média, 413 em leitura. Ainda segundo o relatório, no Brasil, a proporção de jovens da camada mais pobre que conseguiram alcançar o nível 2 em leitura do PISA foi 55% menor do que a de jovens brasileiros de renda mais alta. Essa diferença é 26% superior à média dos países da ‘OCDE’ que é de 29%, onde também se observa desigualdade na leitura entre alunos ricos e pobres.
Poder transformador da leitura
Para o professor de Língua Portuguesa, Redação e Literatura, José Roberto Duarte, sempre foi necessário democratizar o acesso ao conhecimento. “Não precisa ser especialista para constatar o quanto a leitura é importante para o desenvolvimento socioemocional do indivíduo. Também não precisa ser especialista para saber que no Brasil há uma enorme deficiência com relação à leitura, à interpretação, à compreensão de textos. Isso decorre de lacunas educacionais, de investimentos sociais, de participação não só do governo, mas também de várias outras instituições e setores para que se possa combater essa falha, esse abismo que existe entre estudantes de classes mais simples, da zona rural, de periferias e os estudantes que pertencem às classes mais altas, que têm acesso a melhores escolas, a bons livros, a acervo de leitura em sua casa. Infelizmente, isso parece um problema invisível, em decorrência da negligência mostrada até aqui. Iniciativas de bibliotecas circulantes, itinerantes, de contação de histórias e de visita comunidades rurais, às periferias e distribuição de livros e de material de leitura são fundamentais”, opinou.
José Roberto afirma ainda que esses projetos sociais voltados para o incentivo à leitura são importantes para o desenvolvimento da educação. “Nós temos alguns exemplos nas cidades aqui no Ceará, no interior. Nós temos também outros estados, nós temos muitos voluntários que fazem isso, que vão de cidade em cidade, que vão de bairro em bairro levando a cultura, levando o saber, levando a leitura, incentivando. Mas, é preciso mais que as entidades possam então visualizar a necessidade que nós temos de incentivar a leitura para que possamos estabelecer uma geração de cidadãos cumpridores dos seus deveres, que lutem pelos seus direitos para que possam também ter melhores oportunidades, para que possamos ter uma sociedade com melhor senso crítico, com nível mais apurado, no combate às mentiras, às fake news. No combate de tudo aquilo que interfere e aprisiona o cidadão no universo do não saber, para que ele possa ter melhores oportunidades, galgar mais degraus na sua vida pessoal, que vai afetar sua vida profissional. E a leitura é fundamental para que se desenvolva um cidadão crítico, cidadão consciente, um cidadão que cumpra seus deveres e realize também a exigência dos seus direitos. Só através da leitura é que nós podemos tornar isso uma realidade”, finalizou.
0 comentários