Raimundo e Eduardo – uma tragédia nordestina

26/06/2021

“Deus, mesmo, se vier, que venha armado.”

Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas.

 

Eduardo morreu no intervalo do jornal das vinte. Seu Custódio baixou o volume do aparelho. Espiou por cima do balcão do grande armazém e notou uma movimentação, um burburinho.

Não houve grito. Naquele tempo, o som de bala era feito as bombinhas do São João. De pronto, seu Custódio soube o que era.

– Cabras!

Afivelou o cinto de vaqueiro, fechou os botões da camisola branca e meteu o revólver na virilha. Ao sair, pôs a mão no ouvido em forma de concha, como era de seu costume. As ruas comentavam: Raimundo matou o Dr. Eduardo!

O velho subiu a ladeira que dava para o hospital com passos decididos. Seis meses antes, ele fora a testemunha da trégua entre os dois amigos.

Seu Custódio era um desses prefeitos não oficiais que interferem muito mais na vida comesinha do povo. Era um observador próximo dos eventos envolvendo Raimundo e Eduardo.

Raimundo era filho de um conhecido seu de longas datas no comércio, um vendedor de curimatã. Eduardo era o único médico da cidadezinha. Venerado pelo povo, cumprimentava qualquer um e não impunha título ao título de Doutor.

Os dois se conheceram nas vaquejadas. Eduardo era católico, Raimundo era noderstino. Eduardo era da oposição; Raimundo, da situação. A amizade passava bem até às eleições daquele ano. O antigo prefeito perdeu. Eduardo foi à carreata. Ao passar frente à casa de Raimundo, gritou:

– O homem é o bicho, Raimundo! O homem é o bicho!!!

Era o bordão do candidato vencedor. Raimundo, pela primeira vez, fitou o amigo com um ódio mudo. Seu Custódio remediou:

– Brigar por macho! Tomem vergonha, cabras!

A amizade deles ia e vinha. As brigas iam desde qual havia sido a melhor seleção brasileira, se a de 86 ou de 90, à sexualidade do artista que era a glória e louvor da cidade:

– É macho, defendia Raimundo.

– É fanta, implicava Eduardo.

Um dia surgiu uma fofoca miúda, quase inocente, que rapidamente tomou forma, acoplando-se às outras intrigas. E esse telefone sem fio foi discado no próprio hospital.

Crisálida era a assistente de Eduardo. Uma morena à brasileira. Tinha os olhos e o corpo de uma Iracema sem lustre. Dizia-se que Eduardo andava de caso com ela.

Ela era umas dessas transformações milagrosas que a natureza faz. Quando menina, suja e feia. De um dia para o outro, dona do coração da metade dos pagadores de impostos.

Raimundo andava de olho nela há tempos, antes mesmo de Eduardo aparecer na cidade. Ia ao hospital a pretexto de ver o amigo. Num desses dias, palestrou uns minutos com a moça. Eduardo não gostou, mas se calou para não dar na vista.

E foi aí que começou um jogo de insinuações, de indiretas que culminaram na primeira briga feia, de punho fechado e cadeirada, num bar próximo ao hospital.  Seu Custódio, ao saber, chamou os dois:

– Vamos resolver da forma antiga, cabras. Se a amizade de vocês terminar em bala, eu mato o puto que escapar. Agora apertem as mãos.

Refizeram os laços. Diz-se que ficaram até mais unidos. Num dia quente de agosto, entretanto, Raimundo foi deixar uma curimatã graúda no hospital, a pedido do amigo.

Ao ver a assistente, não se aguentou:

– Como vai, alvoroço? (era assim que ele chamava toda mulher bonita). Como anda essa beleza?

– Não muito melhor que a da tua mulher.

–  E tu conhece minha mulher de onde, morena?

– O doutor Eduardo disse que ela é um mulherão. Que tu tem sorte. Que. Deixa para lá.

– Desembucha, morena!

– Bem, que não sabe o que ela viu em tu. Tu sabe, ele gosta de brincar.

Raimundo fez um sinal de entendido com a cabeça. Chegou a casa, descarregou os peixes, trocou de roupa e pôs o revólver na cintura.

Eduardo tinha acabado de atender um paciente. Crisálida saiu para fumar. Ao avistar Raimundo subindo com passos rápidos, revólver na mão, gestos de um animal prestes a dar o bote, gritou:

– Doutor, Raimundo está vindo. E tá armado.

– Eduardo tirou o revólver da gaveta e esperou do lado de fora. Não perguntou o porquê. Ele sabia que um dia acabaria assim. E assim acabou.

Raimundo cruzava a rua, suor no rosto, mãos trêmulas, quando seu Custódio o avistou. O velho seguiu em seu encalço. Sem dizer palavra, atirou três vezes nas costas. Vendo o sangue escorrer ladeira a baixo, resmungou:

– Cabra!

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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