Ralo da vida

11/11/2023

‘‘A tarde é a velhice do dia. Cada dia é uma pequena vida,

e cada pôr do Sol uma pequena morte.’’

Arthur Schopenhauer

 

Dado o dantesco cenário político nacional, nos mais abrangentes aspectos dessa vergonhosa conjuntura, estou me dando umas férias para esta temática. Não que o tema tenha deixado de ser importante para este que vos escreve; não é esse o caso. Muito pelo contrário: a política é um dos temas que mais me interessa; é o tema, juntamente com a literatura, sobre a qual mais me debruço nos livros.

Ocorre, preclaro leitor, que, para se manter um mínimo de saúde mental, ou conservar o pouco do que sobrou, faz-se necessário, de quando em quando, um sazonal afastamento, um distanciamento do tema para aliviar-se da pressão e também para analisar, por outra perspectiva, outro ângulo a questão a qual estamos inseridos… Ou melhor, a atual gestão nos inseriu. São tempos difíceis, amigo leitor. Assim sendo, enquanto não volto à política, ofereço contos que, por ora, são bem mais leves (ou não) do que a triste realidade a qual estamos atravessando.

Convido o amigo leitor a fazer uma reflexão após o término deste escrito. Não me refiro a uma reflexão mediante um aprofundamento filosófico ou psicológico. Não se trata disso. Também não se trata de nenhum conceito didático ou lição a ser aprendida mediante repetições ou fórmulas infalíveis. Também não é uma bela história para massagear o coração e o ego dos leitores mais românticos. Não pretendo tais coisas. Talvez algo mais realisata; sobre uma vida sofrível, vivida há um certo tempo, quando tudo fazia sentido. Onde as engrenagens dos setores de uma vida estavam bem alinhadas e sincronizadas; pelo menos até certo ponto.

Explico melhor. Tudo começou quando encontrei um livro na biblioteca da faculdade. Um livro relativamente bem conservado, embora fosse possível encontrar algumas poucas rasuras e leves riscos de caneta nele. Era intervalo, e eu, como nunca fui bem quisto naquele meio, por discordâncias ideopolíticas, não tinha nada a fazer se não lê-lo naquele momento. Sentei-me em um banco e assim o fiz.

Estranhamente, após algumas páginas percorridas, deu-me a impressão de já conhecer aquela história. E que ela acontecera comigo. Teria eu lido este livro há alguns anos e não mais me recordava, daí, neste momento, a lembrança começou a vir à tona? Ou talvez eu o li em outra vida? Mesmo eu não acreditando em reencarnação, essa ideia passou-me pela minha mente. Ou ainda: seria possível eu tê-lo escrito, baseado nessa suposta vida passada? Afinal, teria eu sofrido, em algum momento desta vida de agora, alguma espécie de amnésia, de alguma doença degenerativa e ninguém me contou, para evitar o meu sofrimento e angústia ante tomar conhecimento da moléstia que estaria consumindo meus poucos neurônios?

Não, amigo, são apenas divagações sem fundamento. Ultimamente, não tenho sido autor nem mesmo da minha própria existência, que dirá de livros literários. Tenho sido, como a personagem do livro, apenas um coadjuvante na vida de terceiros; um figurante, desses que nunca terão uma fala em cena, sequer. Minha vida confunde-se com as histórias e mentiras que invento para os ouros e para mim – embora por razões distintas. Como a personagem na qual me reconheci ao ler o livro, também eu tenho a sensação de que meus melhores dias já se foram e eu nem dei conta. Que meus amigos se foram, e o que restou foram os ecos no corredor da minha mente. Ecos de suas risadas, que se misturavam às minhas.

Alguns voaram para longe, outros, para a terra. E eu aqui, que nem viajo e nem vivo. Que não ecoo grito algum, mas que, se conseguisse, acordaria toda uma vizinhança inteira, como relatou Renato Russo em ‘‘Há tempos’’. Enquanto divago nas páginas do estranho livro, sinto como se, repito, elas falassem sobre mim. Sei que ele não fala, não denuncia, mas parece. E eu sinto uma imensa vontade de correr. De beber. De chorar. Mas nada vem. Nem as forças nas pernas. Nem o copo. Nem o pranto. E olho para um quadro assim que chego da faculdade. E não é um quadro, mas um espelho. E percebo que há muito não me olho. Os dias passaram e eu não os vi caindo pelo ralo da vida.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

 

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