Pediram-me duas linhas sobre Jorge Amado, que, nessa terça 10, faria 109 anos. Aqui vão, cumprindo a pauta do jornal e homenageando singelamente um dos poucos escritores de quem posso afirmar ter lido, rigorosamente, todos os livros, contando o Navegação de Cabotagem, autobiografia lançada em 1992.
Começo por um fato curioso: durante palestra de Gilberto Mendonça Telles, no auditório Castelo Branco, da UFC, faz isso muitos anos, tenho a sorte de sentar ao lado do escritor baiano, que tinha à sua esquerda a mulher Zélia Gatai.
Enquanto o conferencista fazia seus agradecimentos à universidade, concluindo a sua fala, sinto a mão pesada de Jorge Amado apertar-me o braço convidando-me, e à mulher, para “tomar um ar lá fora”.
Claro que o fez num gesto involuntário, sequer atentando para quem havia pouco sentara à sua direita. Quanto a mim, não me fiz de rogado. Segui o casal e compus, com ele, um trio que se pôs a conversar, descontraidamente, nos jardins da Reitoria, por um tempo que teve para mim a extensão da eternidade.
Estudante entusiasta de literatura, pelos vinte anos de idade, vivi ali os 15 minutos de fama de que nos falou Andy Warhol, não sem ter o cuidado de abrir a velha bolsa de couro e sacar dela um exemplar de Capitães da Areia em que guardo, na folha de rosto, a carinhosa dedicatória do casal.
Ler Jorge Amado é antes de tudo imensamente prazeroso. Poucos escritores brasileiros, Érico Verissimo talvez, terão sido capazes de escrever livros tão lúdicos e sedutores, o que por certo explica o fato de que foram, a seu tempo, os dois maiores sucessos editoriais do país.
O caso de Jorge Amado mais, pois que se trata do escritor brasileiro mais traduzido para outras línguas até que surgisse, anos depois, o fenômeno Paulo Coelho.
Estilisticamente identificado como integrante da geração de 1930, dentro da qual se produziu o que existe de mais representativo do que se convencionou chamar de neonaturalismo, Jorge Amado retira da realidade a matéria com que tece suas narrativas, mas o faz extrapolando as fronteiras do real para alcançar uma dimensão poética que transita com sublime habilidade entre o maravilhoso e o fantástico.
Seus romances têm, por isso, um sabor inconfundível, razão por que encantou e continua encantando leitores de diferentes países. Hoje, sua obra pode ser lida em meia centena de idiomas.
Mas, se a doçura do texto resulta no que se pode classificar como lúdico, isto é, numa literatura de entretenimento, não é sem relevo que se faz perceber nela o compromisso político.
Em muitos de seus romances mais importantes, a exemplo de verdadeiros épicos como Terras do Sem Fim, Jorge Amado explora as contradições de uma sociedade desigual e profundamente injusta, mostrando o que move um país onde o jogo de interesses e a insaciável busca de levar vantagem a qualquer custo, por parte dos mais ricos, ignoram os princípios éticos e humanos mais elementares.
Tudo isso, contudo, sem deixar de pôr em cena a resiliência do povo, sua força revolucionária, sua graça, sua malemolência e o seu jeito gostoso de tocar a vida. Não faz literatura panfletária, portanto, colocando-se à parte o não mais editado Subterrâneos da Liberdade.
Numa época em que o Brasil volta a viver o drama do obscurantismo, em que o Estado Democrático de Direito é pisoteado às claras, em que conquistas trabalhistas vêm sendo severamente suprimidas, os livros de Jorge Amado ressignificam-se, como numa reatualização do que existe neles de mais robusto e imorredouro: a coragem de denunciar o lado torto de nossa gente e o fascismo daqueles que nos governam.
Sem perder a ternura jamais, como quis um outro vibrante defensor da justiça e da liberdade.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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