Faz algum tempo escrevi aqui sobre a reedição das entrevistas de Clarice Lispector pela editora Rocco. Ressaltei, na oportunidade, a metodologia adotada pela escritora: “Clarice mais conversa que entrevista, estabelecendo com o interlocutor um método interessante e envolvente de lidar com temas delicados (ou apenas delicados aos olhos de Clarice), revelando-se quase tanto quanto o entrevistado”. Dei exemplos, indiquei veredas percorridas pela escritora no sentido de “arrancar” o que pode haver de mais curioso e verdadeiro das pessoas ouvidas, em sua maioria escritores ligados a Clarice por laços de afinidade pessoal ou artística. Uma delícia, o livro.
Eis que o tema, por feliz coincidência, vem sendo matéria fartamente abordada por grandes cronistas, a exemplo de Álvaro Costa e Silva e o cultuado Ruy Castro, ambos da Folha de S. Paulo, invariavelmente ancorados na jornalista (já falecida) Lillian Ross, citada por mim em coluna da semana passada.
Ross, dizia eu, foi um dos grandes nomes do jornalismo literário, ombreando-se a Tom Wolfe como precursora do gênero. Como o texto tenha despertado o interesse de um e outro leitor pelo jornalismo que extrapola as fronteiras do convencional, indo da mera informação para o jornalismo feito com a arte da literatura, estendo-me no assunto para trazer de volta a emblemática jornalista americana.
É que acaba de ser lançado no Brasil, em tradução de Jayme da Costa Pinto, o prestigiadíssimo “Reporting Always — Writing from The New Yorker” (Sempre Repórter — Textos da Revista New Yorker, Editora Carambaia, 2024).
Em edição primorosa, tipos gráficos graúdos (detalhe que interessa a este leitor), capa dura e esmerado tratamento editorial, “Sempre Repórter” tem introdução da própria Lillian Ross e acurado posfácio de Paulo Roberto Pires. Mas é Ross quem discorre mais diretamente sobre o modo como produzia suas matérias, imperdíveis, diga-se em tempo: “O que faz a escrita brotar de um autor é, em grande medida, um mistério. Em enigma semelhante, as inspirações de um escritor não se revelam de modo explícito naquilo que ele nos apresenta. Ali por trás, à espreita, ronda um espírito esquivo”.
Como Clarice, Lillian Ross tinha com ela um grande trunfo: na contramão do que era recorrente nas redações de jornais, de onde saíam entrevistas e reportagens literalmente sustentadas nas palavras dos entrevistados, uma quase transcrição do que diziam à frente de um gravador, os textos da jornalista americana transitavam pelo que só os planos aproximados do cinema podiam fazer — enquadravam o detalhe, o cinzeiro repleto de pontas de cigarro, a unha por fazer, os vacilos e titubeios diante das perguntas capciosas, coisas, enfim, que costumavam passar despercebidas na hora da entrevista e que tanto diziam do perfil psicológico de cada um. Com isso, mais que “apresentar” um discurso que nem sempre era suficiente para revelar o que se escondia por trás das palavras, suas entrevistas e reportagens guardavam um não-sei-quê de inconfessável que dorme no mais profundo de cada um de nós. Resultava disso, como o “Sempre Repórter” mostra de forma leve e solta, um texto absolutamente maravilhoso, sedutor, desses a que o leitor se entrega por inteiro numa experiência prazerosa e incansável.
Vejamos o que diz Lillian Ross em “Sempre Repórter”: “Outra de minhas regras: não usar gravador. Percebi que tagarelice literal muitas vezes induz a erros e ofusca a verdade. Prefiro fazer anotações e confiar em meu próprio ouvido para diálogos que revelam personalidade e humor, e faço isso sempre que possível quando crio [grifo meu] minhas pequenas cenas”.
É próprio do que se define como jornalismo literário, e que, na coluna mais recente, identificávamos como mais profundo, inventivo, capaz de equilibrar-se gostosamente no delicado fio que separa a ficção da realidade. Mas, compreenda-se, não se trata de mentir sobre o fato, mas de adorná-lo com o perfume da literatura, acrescentando-lhe camadas de fina acuidade jornalística e beleza de estilo. Maior exemplo disso, quero crer, não haverá que o texto “Frank Sinatra está resfriado”, de Gay Talese, verdadeiro clássico do jornalismo literário americano e mundial.
Antes que me esqueça: Clarice, em suas entrevistas, fazia exatamente assim.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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