Simplesmente eu, Clarice Lispector

12/04/2025

“A arte é o vazio que a gente entendeu”, C.L.

 

RIO — Em companhia do escritor Clauder Arcanjo e de sua gentilíssima Luzia, Liana e eu assistimos, no Teatro I Love Prio, nesta cidade, ao espetáculo “Simplesmente eu, Clarice Lispector”. Plasmado em textos, entrevistas, cartas e depoimentos da autora de “Perto do Coração Selvagem” (1943), a montagem tem direção, adaptação e interpretação (irretocável) de Beth Goulart, constituindo um belo apanhado da obra de Clarice — uma espécie de ode ao amor, à busca da essência do ser humano e do sentido da existência num mundo marcado por tremendas contradições e impensáveis desafios.

Num espaço cênico minimalista, onde se veem apenas um divã, uma cadeira e uma humilde escrivaninha, sobre a qual sobressai uma máquina de escrever portátil, Goulart conduz o espectador pelo fascinante universo de Clarice Lispector, explorando vida e obra da escritora com rigor estético e notável força dramática. Os méritos da montagem, no entanto, vão além da atuação propriamente dita da atriz, como disse, irrepreensível, mas porque resulta não menos feliz enquanto representação do mundo interior de uma mulher cujo perfil psicológico ganha corpo e voz numa escrita a um só tempo íntima e universal.

Ao público mais familiarizado com a ficção de Clarice Lispector, já no começo da peça, saltam aos olhos fragmentos extremamente bem selecionados de livros representativos da escritora, desde o romance de estreia, “Perto do Coração Selvagem” (Joana), a outros títulos de sua fase mais madura, com destaque para “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” (Lóri) e os contos “Amor” (Ana) e “Perdoando Deus” (A mulher sem nome), este, provavelmente, o ponto mais elevado em termos dramáticos nas quase duas horas de espetáculo.

Por outro lado, como a dar a exata dimensão do domínio técnico da atriz, sobressai a correção com que Beth Goulart internaliza os conflitos pessoais e as diferentes facetas de Clarice Lispector, transitando com igual segurança da ironia sutil ao deselegante de sua conhecida irascibilidade.

Há momentos, sob este aspecto, em que é a voz de Clarice Lispector que parece ecoar pelos espaços do teatro, como se Goulart tão-somente a dublasse em playback, recurso de sonorização fartamente usado em trabalhos do gênero. Não é o que se vê neste belo e por demais convincente “Simplesmente eu, Clarice Lispector”. É que a atriz se dedicou com desmedida paixão e rebuscado senso profissional a viver a personagem em toda a sua complexidade: ao lado da técnica vocal esmerada, o corpo responde coerentemente ao que diz a voz, quer quando gesticula, quer quando escande sílabas ou mastiga palavras com a mesma imperfeição prosódica e dicção inconfundível de Clarice Lispector.

Além da interpretação “absoluta” de Beth Goulart, deve-se colocar em evidência outras qualidades do espetáculo: a música original, de Alfredo Sertã, assumidamente inspirada em repertório conhecido de grandes compositores, Erick Satie e Astor Piazzolla, por exemplo, anda em sintonia com as ciclotimias emocionais da personagem e da atmosfera dramática do texto. A luz, de Maneco Quinderé, é outro elemento cênico a merecer destaque, obedecendo com sensibilidade e fina percepção pragmática ao ritmo narrativo da peça, acrescentando beleza e plasticidade à encenação.

Findo o espetáculo, já no hall do teatro, Clauder Arcanjo, especialista na obra dessa que é uma das mais importantes escritoras brasileiras, e eu, simples amante, assim como as duas mulheres, ombreamo-nos com igual entusiasmo e os mesmos rasgados elogios a Beth Goulart, e, por extensão, é óbvio, ao sublime “Simplesmente eu, Clarice Lispector”.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

MAIS Notícias
Vida e beleza em meio aos mortos
Vida e beleza em meio aos mortos

Uma manhã de sol, em Paris, sou acordado bem cedo por um amigo brasileiro que chega à cidade pela primeira vez. Era espírita devotado, queria, antes de qualquer coisa, visitar o Cemitério Père Lachaise. Não me ocorreu que essa fosse uma prioridade no programa de...

Humano, demasiado humano*
Humano, demasiado humano*

A vida entre livros leva-nos a compreender pensamentos "antípodas", e a admirá-los, na contradição de desencontrados saberes. Mais que isso, numa espécie de personalização múltipla, de desdobramentos anímicos, a enxergar as coisas como que por espelho de mil faces - e...

Se o desejo acaba
Se o desejo acaba

Durante happy hour, conversamos em grande roda sobre infidelidade. Embora delicado, é tema de pauta, num tempo em que "ficar" é a palavra que define uma relação sem compromisso. De ambas as partes, por óbvio. Penso que a infidelidade acontece quando um relacionamento,...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *