“Os corpos se entendem/mas as almas não/Se queres sentir a felicidade de amar,/esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor./Só em Deus ela pode encontrar satisfação./Não noutra alma./Só em Deus – ou fora do mundo./As almas são incomunicáveis./Deixe o teu corpo entender-se com outro corpo,/porque os corpos se entendem, mas as almas não.” (Manuel Bandeira)
Leitora cruza comigo na rua e dispara: “Adorei a crônica sobre a paixão. Quero ler mais… (risos)”. Poupando-me da obrigação, recomendo-lhe o livro “Paixões” (2005), da escritora espanhola Rosa Montero, autora do belíssimo “A louca da casa”. Curiosa, a amiga não se contenta: “Fala do livro, vai!”
Estávamos na entrada de um banco, tendo pela frente uma fila bem brasileira… e o entusiasmo da amiga, além de tornar pública sua suposta paixão, fez-me lembrar a torcedora de famosa crônica de Nelson Rodrigues. Mas, sobre isso, escrevei dia desses. Voltemos a Montero.
Não é muito dizer que se trata da Martha Medeiros da Espanha, com a vantagem de ser autora de fôlego em livros mais pretensiosos literariamente falando. Entre esses, o celebrado “A boa sorte” (2020), sobre o qual escrevi aqui mesmo algum tempo atrás. São mais de sessenta livros, que vão do ensaio literário, a exemplo de “A louca da casa” ou o aclamado “O perigo de estar lúcida” (2023), para não falar do comovente “A ridícula ideia de nunca mais te ver” (2013), vertiginosa reflexão a respeito da morte a partir dos diários da física e química polonesa, naturalizada francesa, Marie Curie.
Rosa Montero começou a escrever como colunista de importantes jornais de Madri, e hoje assina, com exclusividade para o El País, crônicas que estão no cardápio de leitores do matutino espanhol como a famosa paella na mesa de casa. Seu romance de estreia, “Crônica do desamor” (1979), ensejou o comentário de ninguém menos que Mário Vargas llosa, para quem “sua prosa tensa e direta evita a grosseria e o fingimento”. Desde então, Rosa Montero figura entre os nomes de peso da literatura espanhola.
Mas, o que me levou mesmo a falar dessa belíssima mulher? Ah, lembrei: “Paixões”, o livro que recomendo à distinta leitora, supostamente apaixonada, é um apanhado de histórias envolvendo casais famosos, de Leon e Sônia Tolstói, Elizabeth da Áustria e o imperador Francisco José, passando pelo excêntrico John Lennon e Toko Ono, ao dramático Amadeo Modigliani e Jeanne Hébuterne. O mais curioso, o mais relevante, no entanto, é que o livro de Rosa Montero põe por terra o mito do amor perfeito. Por se tratar de casais célebres, a reflexão em torno do tema eterno ganha uma dimensão nova, e serve como fio condutor de novos debates. Como diria Caetano, “de perto, ninguém é normal”. Uma beleza.
Aliás, já na introdução a autora arrisca uma generalização inquietante: “É que todos somos tentados a acreditar que o próximo é capaz de viver a plenitude que sempre se esquiva de nós mesmos: o amor absoluto, a felicidade completa”. Bingo. Acho que no mundo midiático em que vivemos, somos condenados a projetar nos outros algumas de nossas mais caras fantasias, enamoramentos, paixões. Ahhh, suspiramos, Diogo Nogueira e Paolla de Oliveira, que bonitinhos!” E esquecemo-nos de nós, incorrendo num bovarysmo pequeno-bruguês. Para o grande público, sonhadores da felicidade alheia, existem os reality shows da vida, o BBB, a subliteratura que apinha as gôndolas de livrarias.
Delicioso, o livro de Rosa Montero pode levar, contudo, a leituras equivocadas, uma vez que, é a proposta da escritora, os casais, na sua totalidade, viveram experiências desajustadas, muitos deles doentios, trágicos. É que discorrer sobre a paixão, diz ela, “é nomear o caos”. É aí que o livro traz uma ponderação inquietante: “A essência do passional é a alienação que produz: o apaixonado sai de si mesmo, e se perde no outro, ou, melhor dizendo, naquilo que imagina ser o outro”. Nessa perspectiva, dizia Catão que a alma de quem ama habita o corpo alheio.
Seja como for, “Paixões” é um livro maravilhoso. Se se volta para o que houve de mais doloroso na intimidade desses casais, o que, como disse, pode refletir um certo negativismo, um olhar muito pessimista sobre o amor, que é mesmo a razão de nossas vidas, é que Rosa Montero, ecoando o clássico “História do amor no Ocidente”, de Denis de Rougemont, está atenta para o fato de que “em toda história do amor, mesmo nas mais realizadas e felizes, há sempre um ingrediente de tristeza, o sentimento inexorável da perda”.
Mas, para não desapontar a leitora, se é verdade que esta sensação mágica pode acabar um dia, quem sabe nascerá disso uma outra dimensão do mesmo sentimento, algo próximo de uma bela amizade, de um tipo de companheirismo que nos faz bem, uma cumplicidade encantadora. Sem prescindir, necessariamente, do sexo gostoso e gratuito, ingrediente indispensável para manter acesa a última chama.
Parabéns, mulheres!
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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