Sobre uma crônica e um conto…

30/07/2022

Como o assíduo amigo leitor já deva ter percebido, costumo variar, revezando entre crônicas e contos, semanalmente. Desta vez, farei um ‘combo’. Apresento-lhe, preclaro leitor, em coluna única, uma crônica e um conto. Boa leitura, estimado acompanhante das nossas páginas!

 Cultura vacilante

‘‘A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem.’’ – José Ortega y Gasset

 

Quem lê com frequência, quem é honesto intelectualmente, logo chegará à conclusão de que estamos verdadeiramente sem qualquer apoio à alta cultura. Talvez os péssimos intelectuais de hoje devem render todo o seu tempo a apoiar, erroneamente, como cultura, tudo o que é popularesco. Cultura vacilante.

A cultura, hoje, pelo que se pode perceber, não tem mais valor em si. A arte não tem mais valor em si. Ou seja: se alguma publicação literária, encenação artística, peça teatral não traz em si qualquer reconhecimento com ‘‘o que é nosso’’, com ‘‘o que é do povão’’, o descaso se faz de imediato.

Instantaneamente descartado, o que resta do que chamam de arte, é o que vemos: péssimas culturas que não passam de semiletradas; péssimos críticos; péssimo público também, claro. É, portanto, o mau nacionalismo com o que é nos é autóctone; não confundamos com o nacionalismo pelo apego e preservação da nação. Falo de um hermetismo malévolo, doentio e visceral. Estamos apinhados de péssima cultura, essa é que é a verdade.

Como resultado, não é raro encontrarmos imbecis néscios se achando aptos para comentar toda sorte de temáticas possíveis. Ora, como seria diferente, se a geração do ‘‘não há saber mais, nem menos’’ acredita realmente que são sumidades outorgadas por essa leva medonha de pseudointelectuais?

Antes, a desculpa para o acomodamento era a ‘ditadura (regime) militar’. Após o fim do referido regime, o acomodamento permaneceu até o presente momento. E olha que incentivo do Estado não faltou! A verdade é que, durante os períodos de crise econômica na Grécia antiga, ou do vil comunismo na antiga União Soviética (URSS), onde os recursos e incentivos eram parcos em dado momento, nunca os intelectuais contribuíram tanto para a arte e para a cultura mundial (não apenas local, onde, no Brasil, nem isso é possível cogitar acontecer).

Paraíso extinto

Ao cair da tarde, com o cheiro dos modestos respingos da chuva, no alpendre erodido pelas intempéries, a calmaria se fez. O cachorro latia para os gatos eriçados do outro lado da avenida. Os faróis de um carro iluminavam as lentes do semáforo apagado, e eu a contemplar um paraíso inventado… aliás, extinto.

A minha senhora preparava-nos chá de folha de laranja – ela sempre servia chá em dias de ameaça de chuva, ou chuva, propriamente dita. Acomodei-me na velha cadeira do alpendre e fiz ares de quem, cairia em um iminente e insustentável pranto. Mas não chorei. Apenas gostaria de fazê-lo, mas as bolsas dos meus olhos já retiveram tudo nos últimos tempos.

Lembrei-me que meu pai também as possuia. Era um homem rústico, circunspecto, inconspícuo. Meu pai era, na verdade, o que sou hoje. Eu sou ele, mas em uma versão piorada: não gosto de quase ninguém; não gosto das pessoas em geral… mas não me considero misantropo.

Passeei pela sala, onde esbarrei com a minha senhora, que vinha com o chá. Dei-lhe um beijo chocho e voltei para a cadeira que, nesse curto ínterim, fora tomada pelo meu cachorro, o Marrom. De ligeiro bom humor, não fiz questão do meu assento. Preferi a quina do alpendre para tomar o meu chá que, de tão doce, me pareceu mel. Mas não reclamei (nunca reclamo). Ela não merece.

Odeio doces. Odeio muita coisa, e odiarei muitas outras mais antes de abandonar a existência pela via do inevitável destino. Enquanto divago, não percebo que a neblina se converte numa chuva densa. Olho para o céu (agora percebendo a chuva) e peço a Deus que traga minha filha para junto de mim.

Minha filha é uma das poucas coisas pelo que se valia a pena viver ou morrer. Mas ela morreu e me deixou nesse paraíso inventado – eu gostava do extinto. Minha senhora sempre me chega perto quando percebe que estou pensando nela. Assim o fez. Nos abraçamos e dei-lhe outro beijo. Dessa vez, com gosto de vida e água da chuva.

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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