“Toute mon âme, loin du monde,
S’est réfugiée en tes yeux”
Albert Samain
Quando o capital Thomas Hardy, da Real Air Force (RAF), recebeu a carta de sua noiva, Lady Emily, foi como um vento ameno entre as chamas da angústia. Era o começo do ano de 1942 e a Inglaterra sofria ameaças de invasão pelo Reich. O cenário na Europa era desesperador, mas para os olhos do jovem oficial aquele envelope de tons ocres com uma arredondada letra feminina deu-lhe seguramente um pouco de paz.
O sol morria por trás dos abetos e pinheiros. Na base de Yorkshire, na verdade um velho castelo do tempo dos Tudor onde ficavam os oficiais, o capitão sentou-se em uma negra poltrona, com uma boa dose de whisky, para ler a carta tão querida.
Apenas três páginas de uma cursiva caligrafia. Thomas leu e releu várias vezes, sempre a olhar, através de uma grossa e secular janela, o poente com seus tons sanguíneos…
Caiu a noite na velha Britania. O capitão tardou para achar o sono. Lembranças boas, primeiro, o acolheram… o baile de noivado, segurar a delgada cintura de Lady Emily…fitar-lhe os olhos de um profundo e aconchegante azul… a música daquela noite… os perfumes… o beijo em segredo no jardim…
Depois vieram as inquietações. Muitas. A guerra… os amigos mortos… a delicada situação do seu país. Palavras da carta da noiva vieram-lhe à mente. Ela se angustiava, tinha premonições, preocupava-se com as missões aéreas do amado. “Cuidado, querido, sonhei com um crepúsculo de sangue. O sol se punha em um vermelho muito vivo, cor de sangue. Cuidado, querido”.
Lady Emily era sensitiva. Escrevia poemas. Tinha algo de sacerdotisa druida com aquele ruivo dos cabelos longos, os gestos lentos e delicados. Mais uma sombra de inquietação pousou-lhe na alma com aquelas frases da carta. Adormeceu.
No dia seguinte não voou cedo, como era costume, sobre o território alemão. Soube que teriam instruções, por dois dias, para novas missões; estas seriam noturnas, acompanhando os bombardeiros americanos.
Precisamente às 17h45, três dias depois, o capitão Thomas Hardy estava a ponto de decolar para a sua primeira missão à noite. Tomava-lhe uma certa ansiedade enquanto limpava com uma flanela o vidro do avião à sua direita. A névoa que se dissipou trouxe a visão de um terrível pôr do sol em tons vermelhos. O vermelho sangue da carta de Lady Emily.
Inevitavelmente o capitão ficou perturbado com a visão. Todavia, resignou-se e seguiu o seu destino. Encontraria a morte? Era esse o sentido, deveras claro, dos pressentimentos da noiva? Há certas coisas que não podemos mudar.
Eram duas e quarenta e cinco da madrugada quando o capitão pousou o seu avião em solo inglês. Fora bem-sucedida a missão. O nervosismo do estado de guerra – Thomas refletiu – é que leva a tais impressões, premonições e outras crendices tolas. Adormeceu tranquilo naquele resto de noite.
A vaporosa figura, leve sílfide, de Lady Emily habitou os seus sonhos. Ela sorria e andava entre velhos carvalhos…
Na noite seguinte haveria novos bombardeios sobre a Alemanha. Mas não puderam acontecer. Sequer houve voos porque Londres foi bombardeada pela Lufthwaffe desde as primeiras horas da tarde.
A agitação era enorme na base de Yorkshire. Porém tudo ficou paralisado para o capitão Thomas Hardy, às 17h50 daquela tarde. Um telegrama avisou-o sobre a morte de Lady Emily, uma das centenas de vítimas do ataque inimigo sobre Londres.
Thomas Hardy não conseguia desviar o olhar da direção do poente. Era vermelho, vermelho escuro de sangue!
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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