“… Profundas e indeléveis eram as rugas de sua fronte.”
Alexandre Herculano
“O Solitudo! O Sola Beatitudo!
(Provérbio Medieval)
Talvez possamos imaginar Rosário como uma pequena e esquecida cidade do interior do Brasil por volta de 1850. Situa-se no Sertão. Áridos são o clima e a terra. As ruas são de terra batida, algumas já com pedras enfileiradas. Há uma prefeitura, uma coletoria de impostos, a igreja, dois armazéns, três sobrados na praça principal, a da igreja, e o resto são casas e pastos da gente comum.
Por estas horas, perto do entardecer, o velho sacristão já abriu as negras e pesadas portas da igreja à espera da missa diária. A padroeira é Nossa Senhora do Rosário. Padre Estevão celebra todos os ritos. Passa pouco dos cinquenta anos. É robusto, tem gestos lentos e olhar pensativo. Apesar das longas insônias e da alimentação parca e irregular, tem até boa compleição. Estudou muito, ama os livros. Ordenou-se em Portugal, em Coimbra. Há trinta anos vive em Rosário, na casa paroquial, ao lado da igreja. Não há solidão maior – creiam – do que a de um padre!
Padre Estevão tem verdadeiras convicções. Fortis Fides. Cumpre fielmente todos os deveres e ritos do sacerdócio. É contemplativo, dado a devaneios, reza várias vezes durante o dia. Alimentação frugalíssima. Não toca no vinho, a não ser nas cerimônias sacras. Foge dos Pecados Capitais. Padece de amargas insônias. Não lhe vem o sono antes que cantem os primeiros galos. Fica então a estudar. Os grossos livros postos sobre a negra mesa no escuro salão paroquial. Derretem as velas, a noite silenciosa desliza… ele ali, a ler, a anotar.
Todas as noites… mal deita-se, vai à sala dos livros. Várias estantes tais quais noturnos gárgulas a vigiá-lo enquanto as horas passam. Os livros são sobre a religião. Piedosos volumes. Teologia, comentários bíblicos. Obras em latim, grego, aramaico, entre outros idiomas que o padre domina. Prefere o latim. Nesta vetusta linguagem estudou na Academia. Lembra-se dos tempos do Seminário… Coimbra… os passeios pelo campo… o clima bem mais ameno.
O padre corre os olhos pelas estantes. Carrega para a mesa alguns volumes. Assim passa as noites. Às vezes, exausto, vai à janela e fita a escuridão. Os pássaros da noite murmuram dolências… Vê-se também através da janela as brancas e pequenas cruzes do Campo Santo. Ao lado da Igreja. Aqueles já dormem sem desassossego. Requiescant…
Tal qual um sonho que se repete, com cores de cinza, a rotina em Rosário é a mesma para todos. Também para o sacerdote. As missas matinais e vespertinas, os eventuais batizados, casamentos e funerais, as quermesses e novenas, tudo enfim um mesmo enfadonho cenário no qual os personagens têm as mesmas falas e gestos. Padre Estevão, embora lhe façam sofrer as insônias, anseia pela longa noite, pelos solitários estudos. Livros são confidentes mudos e sinceros.
Ultimamente, sem que haja motivos concretos, o padre tem lido os poetas amorosos em latim. Leitura pouco ortodoxa, por certo. Mas em Rosário ninguém conhece esta língua. Estevão lê uma antiga selecta de versos romanos: Latina Carmina. Edição parisiense, que chegou às suas mãos ainda no tempo da juventude. Com deleite, curiosidade e um pouco de culpa percorre os hexâmetros de Catulo, Ovídio, Propércio, Tibulo… Da mi basia mille deinde centum dein mille altera dein secunda centum (“dá-me mil beijos, depois cem; depois outros mil e mais cem”.
Noite adentro, os versos na velha língua desfilam marciais, embora falem sobre o amor, sobre a mulher. Nada sabe o padre acerca de tais temas. Aegri somnia insomnis.Sonhos de um doente insone. Mas fazem recordar a infância… a prima Clara, do Douro. Loira e pálida. Eram crianças e brincavam. Prometiam noivado, casamento futuro. Ela morreu de tifo antes dos quinze anos. Uma sombra amena e triste agora na memória…
Ovídio, o mais sensual dos vates, fazia-o pensar na filha de Dona Simone. Pecaminoso pensar. Via a jovem na fila da comunhão. Morena, os grandes olhos negros, bem redondos, o corpo em flor… Talvez ela também o fitasse com outras ideias. Talvez só ele pensasse dessa forma, a ler versos eróticos em latim.
O orvalho do nascer do dia ainda tremeluzia nas folhas, os primeiros galos e pássaros cantavam quando, mais uma vez, o sacristão veio acordar padre Estevão que adormecera sobre os livros. Muitos estudos, muito devanear, um pouco de sono…
– Padre, padre; são horas… a missa… são horas…
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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